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A mulher advogada e a (des)igualdade de gênero

O mercado de trabalho nem sempre esteve de portas abertas para nós mulheres, por muito tempo consideradas incapazes de desempenhar qualquer papel profissional.

Historicamente, nossa atuação se restringia a setores que são considerados mais femininos, como a educação, a saúde, as artes e as ciências humanas.

Não é difícil notar que, mesmo em um tempo de discussão sobre questões de gênero, de falar sobre empoderamento feminino, o gênero ainda se mostra relevante quando já deveria ser superado.

Atualmente, nossa luta é reconhecida por grandes marcos históricos que se sucederam de atos de empoderamento praticados no passado, em um período em que a sociedade era mais profundamente revestida pela cultura do patriarcado, legitimado inicialmente pelo Decreto nº 181, de 1890, que previa o domínio dos homens sobre as mulheres.

Quando se analisa nossa participação nas carreiras jurídicas, ao olhar apenas para as listas de aprovação nos exames de Ordem ou dos concursos públicos, pode-se ter a falsa ideia de que há igualdade em relação aos homens. Mas basta análise não muito minuciosa, como a da composição dos tribunais, constituídos majoritariamente por indivíduos do sexo masculino, para perceber a necessidade de constante luta pela igualdade de participação nos mecanismos judiciários entre os dois gêneros.

Também não é difícil encontrar as desigualdades salariais entre nós e os homens, diferença na progressão de carreira baseada no sexo dos profissionais e perguntas em entrevistas feitas exclusivamente a candidatas mulheres: “Você pretende ter filhos?” 

Por isso, é preciso ter consciência que a desigualdade existe para ter capacidade de identificar certas discriminações no cotidiano. Por exemplo, o fato de nós, mulheres advogadas, não sermos ouvidas; o fato de nossas opiniões não serem levadas em consideração; a inclinação dos homens em enaltecer seus atributos físicos ou sua beleza no lugar de sua competência. Por eu ser mulher, o trabalho autônomo é uma via predominante de atuação profissional e as dificuldades são ainda maiores: não há direito à interrupção ou à suspensão legal de prazos de um processo durante o período de licença-maternidade, por exemplo.

Somente em 2016, a advogada lactante, adotante ou que der à luz teve seus direitos como tal reconhecidos dentro da profissão. Até então, profissionais nesta condição não possuíam nenhum direito diferenciado durante os primeiros meses como mãe.

Então, a Lei nº 13.363/2016 trouxe benefícios significativos, especialmente por suspender os prazos processuais por 30 dias a partir do nascimento dos filhos da advogada ou da adoção feita por ela.

Os efeitos dessa determinação são enormes. Ela impactou especialmente na rotina das mães que, antes, precisavam se desdobrar para cumprir prazos e participar de audiências em meio às necessidades do filho recém-nascido.

Mesmo com toda essa atitude de discriminação fundamentada no sexo, nossa atuação no mundo jurídico é notável e ganha espaço a cada dia. Segundo registros do IBGE, a população feminina no Brasil é maioria, corresponde a 51,7% pelos dados divulgados em 2018 e a hegemonia masculina nas carreiras jurídicas, embora ainda existente, está próxima de acabar.

Conforme registros da Ordem dos Advogados do Brasil, são 1.247.678 advogados no país, sendo que o contingente feminino corresponde a 48,9%, o que é uma grande conquista tendo em vista o período não tão distante da realidade intelectual e política ser um privilégio dos homens. Tal crescente pode ser atribuído à luta de décadas que ainda perdura pela igualdade de gênero.

Sem o pioneirismo das mulheres que desbravaram as possibilidades de suas atuações na sociedade talvez não estivéssemos quase no mesmo número que os homens na advocacia.

As mulheres que abriram portas para liberdade de atuarmos como operadoras do direito precisam ser conhecidas, lembradas, reverenciadas e exaltadas, pois enfrentaram muita oposição de um mundo embevecido pelo patriarcado, pelo machismo opressor, pela crença de incapacidade do feminino.

A primeira mulher que podemos citar chama-se Esperança Garcia. Mulher negra escravizada, foi reconhecida como a primeira advogada piauiense, em 2017, pela OAB do Piauí. Em 1770, ela escreveu uma petição ao governador da capitania em que denunciava as situações de violência pelas quais ela, seus filhos e suas companheiras passavam e pedia providências. O dia 6 de setembro, data de escrita da carta, foi instituído como Dia Estadual da Consciência Negra, no Piauí, em 1999. Em 2016, foi criada a Pós-Graduação em Direitos Humanos em sua homenagem, em Teresina.

As primeiras mulheres a se formarem em Direito surgiram no século XIX pela Faculdade de Direito de Recife. Mais adiante no tempo, Maria Augusta Saraiva foi a primeira mulher a ingressar na Faculdade de Direito do Largo São Francisco e a primeira a atuar no Tribunal do Júri.

Myrthes Gomes de Campos foi a primeira advogada do Brasil e lutou pelos direitos das mulheres, pelo exercício da advocacia, pelo voto feminino, dentre outros temas ligados à emancipação.

Se em 2018 nós somos maioria e com mais qualificação que homens em nosso país, chegando próximo a igualdade em números no mundo jurídico, ainda somos minoria em cargos mais altos como a magistratura.

As barreiras que dificultaram a ascensão das mulheres no campo profissional se comparada aos homens estão vinculadas ao tardio pleno direito de voto, conquistado em 1946, que, por sua vez, está relacionado a impedimentos legislativos da época que foram ultrapassados após muita luta de figuras femininas.

Em que pese superados juridicamente, não é difícil notar o baixo número de mulheres nas posições mais altas do Poder Judiciário e posturas no ambiente jurídico que remetem ao colonialismo, a exemplo da sustentação oral da advogada que foi interrompida por Ministro do STF para exigir observância da liturgia. O episódio demonstra, dentre outras questões, que a comunicação pode nos fazer ver o abismo entre a tão buscada igualdade de gênero, se pensarmos que a advogada representava também o direito de as mulheres serem ouvidas na mais alta instância de julgamento do país.

Se a provação é maior para as advogadas, quando falamos das profissionais negras, a dificuldade é maior também no ambiente jurídico. Isso quer dizer que o racismo estrutural da sociedade brasileira alcança também a estrutura da Justiça como reflexo de uma vida de desigualdade racial.

Prova disso é a disparidade entre o número de profissionais homens e mulheres negras, correspondente a 1%, segundo dados disponibilizados pelo jornal Folha de S. Paulo em 2019. Muito embora não haja registros da porcentagem de mulheres negras pela Ordem dos Advogados do Brasil, é possível se ter a dimensão da grande desigualdade racial na advocacia.

Apesar da luta contra o racismo na advocacia, a exemplo da Associação Nacional de Advocacia Negra (ANAN), ainda nos depararmos com casos como o da advogada negra Valéria dos Santos, que foi algemada por dois policiais dentro do fórum de Duque de Caxias, Rio de Janeiro, em setembro de 2018, durante uma audiência, ato que viola os direitos garantidos por todos e todas advogadas no estatuto da OAB.

Diante de todas essas situações, é possível constatar que o mundo dos negócios ainda é completamente dominado pelos homens (e brancos, ressalte-se), de modo que uma das dificuldades que nós mulheres enfrentamos é ter que nos provar sempre capaz. O ambiente masculino é bastante conservador e é muito comum sermos testadas, inclusive no sentido de suportarmos algumas pressões profissionais e situações de estresse.

Além disso, infelizmente, ainda é muito comum ouvirmos brincadeirinhas sobre aparência, cantadas, situações constrangedoras e de assédio, sendo obrigadas a nos impor duplamente. Muitos homens ainda acreditam que a competência está embalada no terno e gravata.

Os motivos para se indignar com tanta desigualdade não são claros e a complexidade é uma característica da contemporaneidade. Entender a história de lutas, os direitos conquistados e o papel da mulher advogada é a única forma de não reproduzimos discursos que fragilizam a condição de ser mulher.

A jornada na advocacia feminina está inserida nessa luta, não apenas como categoria, mas em especial como missão social que nos responsabiliza como transformadoras da realidade. Sigamos!

REFERÊNCIAS

Equipe do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho – CESIT/IE. As mulheres e o mercado de trabalho. Artigo in: https://www.eco.unicamp.br/images/arquivos/Caderno-3-web.pdf. São Paulo, 2017

Equipe do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho – CESIT/IE. Mundo do trabalho das mulheres: ampliar direitos e promover a igualdade. Artigo in: http://www.cesit.net.br/wp-content/uploads/2017/12/Mundo-trabalho-mulheres-web.livro_-1.pdf. São Paulo, 2017.

Ordem dos Advogados do Brasil. Quadro de Advogados. Disponível em: https://www.oab.org.br/institucionalconselhofederal/quadroadvogados

As mulheres e o Direito: histórias de pioneirismo. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI235253,61044-As+mulheres+e+o+Direito+historias+de+pioneirismo

A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP. Mulheres no direito: conheça 6 figuras inspiradoras. Disponível em https://www.conamp.org.br/blog/mulheres-no-direito-conheca-6-figuras-inspiradoras/

Série inclusão: o voto feminino no Brasil. Tribunal Superior Eleitoral: artigo in: http://j. Mp/1jgNJDZ 18 abr 2013.

BIANCHINI, Alice. Liberdade como pressuposto da igualdade de gênero. Disponível em http://www.lfg.com.br – 29 de março de 2011.

SHUMAHER, Schuma e BRAZIL, Érico Vital (org.). Dicionário das mulheres do Brasil: de 1500 até a atualidade. Ed. Jorge Zahar. Rio de Janeiro, RJ, 2000.

SIQUEIRA, Wanda Gomes. A primeira mulher advogada. Artigo in: http://j. Mp/1rbgOBd 10 ago 2012.

SOARES, Danyele. Participação das mulheres na política ainda é desafio. Artigo in: http://j. Mp/1w7SXTa 08 mar 2014.

 

Natália Fiorini Mayer

Advogada da LBS Advogados
E-mail: natalia.fiorini@lbs.adv.br

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