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“Ela pensou”

“Raça, gênero e classe social: como estes fatores se sobrepõem e se relacionam. São estes os tópicos da nossa conversa de hoje”, ecoou o programa de TV ligado dentro de um dos cafés mais tradicionais da cidade. 

– Não sei não, não gosto de falar desses assuntos. Disse o homem branco, de meia idade, sentado na mesa 7.

– Realmente, acho complicado demais… Qualquer coisa que se diz já se transforma em opressão! Quem foi que inventou esse negócio? Concordou o jovem de olhos claros, tomando seu café.

– Acho melhor nem falarmos disso alto, ainda mais hoje, esse tal dia contra discriminação, sabem como é, né? Eu mesmo acho um absurdo pós-moderno isso tudo, qual a necessidade de uma data para isso? Disse o terceiro homem em tom de deboche.

Neste momento, saiu de trás do balcão, com o pedido daqueles senhores da mesa 7, uma jovem mulher negra. Ela os ouviu. Mas sabia que se quisesse continuar a trabalhar ali, não podia falar nada. Devia se manter calada e tentar esquecer o que ouvirá. 

Pelo menos, era isso o que lhe foi ensinado a vida toda. Aprendeu desde cedo que mulher tem que aguentar, ser dócil e gentil, pois é muito feio se alterar em público. Procurar brigas? Nem pensar! Direitos? Que direitos? Como negra, sempre soube que essa tal de igualdade é só para os brancos. De preferência, ricos. De preferência, homens. Sabe como é, só dá para discutir direitos falando de igual para igual. 

– Você é mulher e negra, coloque-se no seu lugar!

– Não sabe que ninguém se importa com o que você pensa?

Essas frases detestáveis ecoavam em sua mente. Tinha vontade de vingar-se de todo o machismo e racismo já vividos ali mesmo, naquele café, na figura daqueles ignorantes senhores da mesa 7.

Perderia o emprego? Com toda certeza!

Ainda assim, uma dúvida pairou sobre sua mente. Aquelas frases que tanto ouvira a paralisaram, ao mesmo tempo que, em um justificável ato de desprezo por aqueles homens, despertou o desejo de puni-los. Despejaria aquele café fervente em todos eles? Talvez. 

E seu sustento? Só ela sabia o que passou para conseguir um “bom emprego” em um “bom estabelecimento”. Jogaria tudo água abaixo, ou melhor, café abaixo?

Pensou, então, naqueles três homens brancos e em tudo que simbolizavam. Ali metaforicamente representando a mais alta casta da estrutura social. Pensou em quantas mulheres negras, como ela, já haviam lhes servido, quantas já haviam sido desrespeitadas… Pensou em outro homem: o chefe, um abastado senhor branco beirando os 50. Pensou em como entre ele e aqueles senhores havia similaridades, como todos eles eram desproporcionalmente privilegiados. 

O chefe adorava enfatizar em um tom de orgulho burguês que não tinha qualquer problema em contratar gente de cor. Sentia-se um messias da igualdade social por pagar a seus funcionários um salário de fome que mal dava para o mês.

E antes de poder imergir de volta aos pensamentos, lembrou-se de que precisava levar o pedido dos idiotas da mesa 7. Respirou fundo e foi. Não precisou aproximar-se muito para perceber que o assunto era o mesmo.

– Olha isso Paulo, estão dizendo que essa data foi instituída durante uma manifestação em 21 de março de 1960, na cidade de Johanesburgo, quando o exército atirou sobre a multidão, matando 69 militantes e ferindo outros 186, disse o jovem de olhos claros em tom de desafio para o amigo.

– Veja bem Plínio, causa nobre, mas isso foi em 1960, nossa realidade mudou muito, não há qualquer necessidade de persistir nessas pautas, esse papo de racismo já foi superado há muito. Isso é vitimismo barato, meu caro!

Nesse momento, colocando os pedidos sobre a mesa, em um esforço sobre-humano para não perder a calma, contrariando a posição daqueles senhores e desafiando tudo que aprenderá desde sempre, pensou a jovem em quão presente é 1960. Afinal, o racismo apenas se estruturou e se moldou à nova realidade social e à população negra. Quanto a isso ela não precisa de faculdade ou estudo científico para constatar, já que o dia a dia, no alto de seu poder empírico, se encarrega de comprovar: os negros, sobretudo as mulheres, ainda sofrem desmedidas e reiteradas formas de violência por parte da sociedade civil e do Estado.

Notou que os relances da televisão se encarregaram de anunciar a brutal morte de mais uma mulher negra, demonstrando, assim, como uma ironia do empirismo, que realmente 1960 está logo ali. Basta fechar os olhos para poder tocar, basta sair à rua para sentir. Essa realidade tem nome. Seu nome é Marielle Franco. 

A imagem da militante negra, feminista que ousou denunciar a violência daqueles que se creem proprietários do poder, encheu o coração da jovem de sentimentos que ela sequer conseguia explicar. Apenas sabia dizer que já vira esse filme outras vezes. Conhece muitas Marielles. São suas filhas, primas, vizinhas e amigas. Também conheceu Amarildos, Claudias, DGs… E se perguntou: quantos mais amigos e conhecidos teria que perder para que aqueles senhores que estava a servir finalmente se dessem conta que ainda estamos em 1960? Será que um dia entenderiam o medo de andar pelas ruas à noite? Será que um dia algum deles sentiria o que é ser taxado como pertencente de uma subclasse social? Será que um dia seriam atacados com o discurso falacioso da meritocracia? 

A velocidade de seus batimentos cardíacos já não acompanhava o ritmo de seus pensamentos. Estava prestes a se afogar novamente em seu silêncio, quando mais uma vez foi acordada pela notícia da televisão. 

Dessa vez, as imagens mostravam Marielle em plena atuação. Era como se estivesse vendo uma velha amiga discursar. Ela não falava sobre assuntos distantes ou realidade desconhecida. Marielle falava sobre aquilo que a jovem via e sentia todos os dias. Falava de exclusão, mas também falava de luta, de Zumbi dos Palmares e de Carolina de Jesus . Falava de desigualdade, mas também contava com orgulho sobre a luta da quilombola Dandara .

A jovem, com o coração ainda pesado pelo luto de mais uma das suas, decidiu então que a voz de Marielle não poderia ser calada. 

Isso seria dar a vitória aos que se sentavam naquela mesa. Seria reconhecer e aceitar com a mansidão dos que preveem o futuro que ela seria a próxima Marielle ou que seu filho seria o próximo Amarildo. Sabia que o racismo e o patriarcado estavam longe de acabar, não era ingênua. Mas também sabia que a luta é constante, permanente e exige vigília. Fundamentalmente, sabia que não estava sozinha. 

As milhares de pessoas que se mobilizaram em solidariedade e protesto pela morte de Marielle de repente invadiram sua alma, conferindo-lhe uma ponta de esperança. Aquelas pessoas eram todas sementes dessa tal de esperança, sentimento que não se apaga com 9 tiros. E não seria ela a responsável pela perpetuação da tentativa secular de calar Marielle. Concluiu que já não cabia mais divagar, era tempo de falar. Talvez aqueles senhores jamais fossem capazes de entender, mas a coragem de Marielle a inspirou. 

Fechou os olhos, mentalizou a canção que sua bisavó aprendera na senzala, afastou o medo paralisante e, com a voz segura de quem ensina, disparou: 

– Hoje, 21 de março de 1960 (ou seria 2018), é dia de luta, dia de minha luta e estou presente! 

Sarah Cecília Raulino Coly

Sócia da LBS Advogados
E-mail: sarah.coly@lbs.adv.br

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