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MP nº 914/19: o “presente” de Natal de Bolsonaro para as universidades públicas

Na véspera de Natal, foi publicada a Medida Provisória nº 914/2019 que dispõe sobre o processo de escolha dos dirigentes das universidades federais, dos institutos federais e do Colégio Pedro II. À primeira vista, o objetivo da medida é unificar o procedimento de votação com a obrigatoriedade de consulta à comunidade acadêmica para a formação de lista tríplice, mas, com olhar acurado, vislumbra-se claramente a interferência na autonomia das universidades, que é resguardada pela Constituição federal.

O principal ponto da MP é a imposição de eleição, preferencialmente eletrônica, em que cada seguimento da universidade possui um peso na votação, sendo que os servidores efetivos do corpo docente lotados e em exercício na instituição representam 70% do peso e os outros 30% ficaram divididos igualmente entre os servidores efetivos técnico-administrativos e os integrantes do corpo discente.

Prevê, ainda, o afastamento de cargo em comissão ou função de confiança do candidato a reitor, com prejuízo da remuneração do cargo ou função; designação de reitor pro tempore pelo Ministro da Educação em caso de vacância simultânea dos cargos de reitor e vice-reitor e na impossibilidade de homologação do resultado da votação em razão de irregularidades no processo de consulta; impôs condições para nomeação de diretores e vice-diretores; e, por fim, que o Ministério da Educação, por meio de ato, irá dispor sobre critérios para assegurar integridade, confidencialidade e a autenticidade do processo de votação eletrônico, que deverá ser adotado como forma preferencial.

Para que possamos compreender a amplitude da interferência, é necessário compreender como, até então, era conduzido o processo de escolha pelas universidades.

A Lei nº 9.192/1995, que regulamentava o processo de escolha dos reitores e que foi completamente revogada pela MP nº 914/2019, concedia autonomia ao Conselho Universitário — instância máxima de deliberação dentro da universidade —, o qual elaborava uma lista tríplice, precedida ou não de consulta à comunidade acadêmica, e a encaminhava para o Ministério da Educação.

Após, o Presidente da República escolhia, tradicionalmente, o primeiro nome da lista tríplice e nomeava o reitor. Desde 2003, a partir da gestão do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), sempre foi nomeado o primeiro nome indicado pelo Conselho Universitário, correspondente ao mais votado no processo de escolha das instituições federais de ensino.

O modelo de eleição adotado pela medida provisória já era previsto desde a Lei de Diretrizes e Bases para a Educação – LDB (Lei nº 9.394/1996), que atribui peso de 70% ao voto do corpo docente e 30% ao voto do corpo discente e servidores técnicos e administrativos.

Ocorre que, com base na garantia constitucional da autonomia das universidades, inscrita no art. 207 da Carta da República, mais de 68% destas instituições adotam, em seu processo de escolha, o voto paritário, por entenderem que é mais democrático. “Nesse modelo, cada categoria da universidade possui 33,3% do total de votos. Isso significa que, independentemente do número absoluto de pessoas representadas por cada categoria, cada uma delas terá peso de 1/3 na apuração total[1]”.

Isso demonstra que, no exercício da sua autonomia, cada universidade utilizava do que considerava ser o melhor método para escolha da composição da lista tríplice, garantia que lhes foi retirada com a publicação da Medida Provisória em comento.  

Destaca-se que a MP nº 914/19 inovou, também, quanto ao processo de escolha de reitor dos institutos federais, pois nessas instituições não existia sequer lista tríplice, bastando a indicação do nome vencedor do pleito para que fosse efetivada a nomeação pelo Ministério da Educação. A votação era na forma paritária, conforme determinado pela Lei nº 11.869/08, que teve o artigo 12, que cuidava do tema, revogado.

A partir da publicação da MP nº 914/2019, os institutos federais serão submetidos ao mesmo processo de eleição das universidades federais, com indicação dos três primeiros colocados em lista tríplice.

Em que pese não existir qualquer relevância e urgência a justificar a edição de medida provisória — instrumento com força de lei, que já produz efeitos imediatos até que seja votada ou até que caduque —, é possível observar o interesse político do governo (i) no controle das nomeações dos dirigentes das instituições federais de ensino, bem como (ii) na redução do poder do Conselho Universitário e, mais grave, na (iii) interferência sobre a autonomia da universidade. 

(i) A interferência política nas universidades públicas já é observada como política pública, desde a posse do presidente da República.  Exemplo disto é o reiterado atraso do MEC em nomear os reitores dos institutos federais, sendo o exemplo mais icônico o do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia – IFBA.

A professora Luzia Matos Mota, eleita há mais de um ano, impetrou mandado de segurança no STF (MS nº 36.862) para sanar a conduta omissiva do presidente e do ministro da Educação, Abraham Weintraub, tendo sido nomeada também no dia 24/12 após a notificação das autoridades.

Outro tipo de intervenção política que afeta a autonomia das universidades é o fim do costume em nomear o primeiro indicado da lista tríplice. Das doze nomeações que ocorreram desde o início do mandato, seis não respeitaram o primeiro nome indicado pelo Conselho Universitário.

(ii) Enquanto em outros governos havia constrangimento e um grande desgaste político em não respeitar o primeiro indicado da lista tríplice, para o atual governo não há nenhum inconveniente em quebrar esse paradigma democrático.  E mais, não satisfeito com os nomes até então indicados pelo Conselho Universitário, edita, agora, a Medida Provisória nº 914/2019 para impor à universidade processo de escolha à sua maneira.

A interferência na autonomia político-administrativa da universidade fica clara ao se compreender o intuito da MP nº 914/2019, em pôr fim ao poder dos Conselhos Universitários. Conforme dito anteriormente, cada universidade possuía autonomia para escolha dos candidatos à reitoria, por meio de processo de escolha da comunidade acadêmica, ad referendum do Conselho Universitário, o qual remetia a lista tríplice ao MEC. Para elaboração da lista tríplice, o Conselho não precisava enviar os nomes dos três primeiros colocados, de cada chapa, no processo de escolha da comunidade acadêmica, mas indicar, por exemplo, os integrantes da chapa vencedora.

Com a MP n° 914/2019, o Conselho Universitário perde esse poder, pois o processo de escolha está hermeticamente regulamentado, sem sequer passar por sua deliberação, de modo que o presidente da República poderá escolher o candidato a reitor que ficar em segundo ou terceiro lugar, independentemente do número de votos. Pelo didatismo, mencionamos o exemplo do Ministro da Educação, durante o governo da Presidenta Dilma Rousseff (PT), Renato Janine Ribeiro:

“Vou desenhar.

Se você vota num único nome, há chances de termos um nome aclamado pela comunidade, com mais do que 50%, liderando a lista, e depois dele outro, com 20, e um último, com apenas 5%.”                           

(iii) Vale relembrar, aqui, a literalidade do art. 207 da Constituição federal, segundo o qual “as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”.

Até a edição da MP nº 914/2019, a nomeação pelo presidente da República, de reitor indicado por lista tríplice, conciliava-se perfeitamente com o princípio da unidade do serviço público.  Agora, com a edição da Medida Provisória, a Presidência da República, além de interferir na autonomia das universidades, escanteando o Conselho Universitário, também fere a gestão democrática do ensino público (inciso IV art. 206 da Constituição federal), alijando as universidades de deliberarem sobre e conduzirem o processo de escolha dos seus gestores, submetendo-as às regras impostas pela MP.

Além de não seguir a prática política que privilegia princípios democráticos, a MP nº 914/19 cria subterfúgios para que o presidente não se submeta à decisão do Conselho Universitário, tomada segundo às práticas particulares a cada instituição, e tenha opções para nomear à maneira de um autocrata, como lhe tem sido peculiar.

REFERÊNCIA

[1] Disponível em <https://www.politize.com.br/como-e-escolhido-quem-assume-reitoria/>. Acesso em 26/12/19.

Camilla Galdino Cândido

Advogada da LBS Advogados
E-mail: camilla.candido@lbs.adv.br

Ricardo Quintas Carneiro

Sócio da LBS Advogados
E-mail: ricardo.carneiro@lbs.adv.br

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