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Quanto vale um sonho e quem é que lucra com ele?

Os recentes acontecimentos deste início de 2019 fizeram com que as pessoas parassem para refletir o quanto vale uma vida. E mais: exercitar nosso pensamento crítico sobre o quanto se lucra em prejuízo das vidas humanas. Neste artigo, em especial, refletiremos sobre o ocorrido há pouco mais de uma semana (na madrugada do último dia 10/02) no Centro de Treinamento de um dos clubes mais ricos do país e o que se passa no universo dos “negócios futebolísticos”.

Antes da reflexão, é importante destacar que os negócios propriamente ditos no universo do futebol brasileiro envolvem transações milionárias. O Clube de Regatas do Flamengo é um dos clubes que mais lucra, sendo que, entre os anos de 2017 e 2018, obteve o maior valor de receita anual (no importe de R$ 649 milhões de reais), superando a receita do Palmeiras (que obteve R$ 504 milhões de reais no ano) e o São Paulo (R$ 480 milhões de reais no ano)[1].

A partir dos dados acima descritos, faz-se o primeiro questionamento: os clubes possuem condições de abrigar os adolescentes que compõe a categoria de base em local adequado e seguro? Pela receita, a resposta só pode ser SIM. E por que não o fazem? Eis uma pergunta que, neste momento, qualquer resposta ou justificativa plausível não trará de volta a vida de 10 garotos sonhadores que morreram.

Outro questionamento necessário: qual era a relação contratual que os 10 adolescentes vítimas do incêndio em 08/02/2019 no Centro de Treinamento do Flamengo, conhecido como Ninho do Urubu, mantinham com o clube? Esses contratos eram regulares?

Cabe ainda perguntar quem são esses jovens que deixam suas casas e famílias e passam a viver em prol da busca de seu maior sonho – tornar-se uma grande estrela do futebol. De que modo conseguem atingir o grande sonho?

A maneira mais singela de desenvolver a análise crítica que propomos deve ser respondendo o último questionamento.

Pois bem, é notório que os jogadores de futebol de nosso país, em sua grande maioria, são jovens de classe baixa, que, além da paixão nacional pelo futebol (quem não é apaixonado, não é mesmo?), enxergam com a profissionalização de seu sonho uma maneira de mudar sua situação financeira e de toda sua família. São jovens que não possuem incentivo educacional ou financeiro para poder desenvolver profissões que permitem um padrão de remuneração razoável para as necessidades do dia a dia e sobrevivência das famílias.

Geralmente, no início, eles são estimulados por algum membro da família a desenvolver habilidades no futebol em escolinhas ou pequenos clubes. Quando desempenham papel de destaque, chamam atenção dos olheiros, que, no universo esportivo, são denominados profissionalmente como “agentes”, cuja profissão é regulada pela FIFA. Na maioria dos casos, os agentes são os responsáveis por levar os jovens aos grandes clubes, que, a partir de testes, avaliam se os garotos reúnem condições técnicas de desenvolver um trabalho de base nos clubes e, posteriormente, fazer parte do elenco principal.  

Tanto o clube quanto o agente profissional obtêm lucro quando do bom desenvolvimento técnico dos jovens sonhadores, principalmente quando ocorre transações internacionais. E a instituição formadora do atleta possui direito a 5% do valor pago pela nova entidade de prática desportiva (art. 29-A da Lei nº 9.615/98).

Boa parte dos trâmites contratuais entre agentes, clubes e jogadores são regulados pela Lei nº 9.615/98, conhecida como Lei Pelé, porém, além dela, a relação contratual de trabalho também é regida pela Constituição federal (art. 7, inciso XXXIII), Estatuto da Criança e Adolescente (arts. 60 e 65) e Consolidação das Leis do Trabalho (art. 403). A Constituição e a CLT estipulam que “é proibido o trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos de idade”. E o ECA, por sua vez, determina que, “ao adolescente aprendiz, maior de quatorze anos, são assegurados os direitos trabalhistas e previdenciários”.

As 10 vítimas fatais do incêndio ocorrido no Centro de Treinamento do Flamengo tinham entre 14 e 16 anos de idade, sendo que cinco adolescentes tinham 14 anos de idade, quatro tinham 15 anos de idade, e apenas uma das vítimas, 16 anos de idade. Assim, pressupõe-se que apenas uma das vítimas possuía contrato de trabalho formal de trabalho, uma vez que a própria Lei Pelé, em seu artigo 29, determina que a entidade de prática desportiva formadora do atleta terá o direito de assinar o primeiro contrato de trabalho apenas quando o atleta completar 16 anos de idade.

Esse é um dos pontos que necessita ser esclarecido pelo Ministério Público do Trabalho a partir da fiscalização que está em andamento. Sim, agora os órgãos de fiscalização passaram a entender a necessidade de investigar a situação na qual os adolescentes se encontravam, inclusive, para apuração de acidente do trabalho e as devidas responsabilizações.

Não bastasse, a própria Lei Pelé, em seu artigo 29, § 2º, alínea II, d, determina que a instituição formadora deverá “manter alojamento e instalações desportivas adequados, sobretudo em matéria de alimentação, higiene, segurança e salubridade”.  Situação não cumprida pelo Flamengo e negligenciada também pelos órgãos competentes de fiscalização.

A própria legislação trabalhista entende que o alojamento só deve ser permitido em caráter de exceção, visando a segurança do trabalho e a garantia da saúde dos menores, como abaixo se transcreve o artigo 409 da CLT:

“Art. 409 – Para maior segurança do trabalho e garantia da saúde dos menores, a autoridade fiscalizadora poderá proibir-lhes o gozo dos períodos de repouso nos locais de trabalho.”

O MPT-RJ passou a investigar se o ocorrido no Centro de Treinamento do Flamengo trata-se de acidente de trabalho, atuando em caminho preventivo, com objetivo de impedir que outros casos semelhantes aconteçam, e de caráter reparatório, com o objetivo de indenizar a família das vítimas. Segundo investigação prévia, havia menores sem autorização formal dos pais no alojamento. Porém, ao que se sabe, órgãos fiscalizadores competentes (como a Prefeitura, por exemplo) tinham ciência das condições impróprias do alojamento e não interditaram o local.

O Flamengo, ciente da situação, também não buscou reparar as condições impróprias do alojamento dos jovens, e com uma agravante que merece total destaque: com plenas condições financeiras de propiciar um alojamento digno para os menores. Menores estes que são objeto da manutenção dos futuros negócios milionários no universo futebolístico.

Como exemplo, podemos citar a história do jogador Vinícius Júnior, atual jogador do clube Real Madrid, que teve o Flamengo como seu agente formador. Vinícius passou a atuar pelo Flamengo em 2010, com 10 anos de idade. Em razão de seu efetivo desenvolvimento e para se proteger do assédio dos demais clubes, o Flamengo formalizou o primeiro contrato de trabalho com o jogador em 2016, assim que completara 16 anos de idade, como a legislação exige. Em 2018, com a transação milionária entre jogador, agente e clubes, o Flamengo lucrou R$ 146 milhões de reais apenas com venda do jogador Vinícius Júnior para o Real Madrid[2].

Infelizmente, os 10 jovens sonhadores vítimas do incêndio ocorrido há pouco mais de uma semana no Ninho do Urubu não poderão saber se um dia seriam “novo Vinícius, Neymar ou Messi”. E essa infelicidade é resultado da ausência de responsabilidade de empresas, órgãos fiscalizadores e instituições regulamentadoras quando se trata de preservação da vida humana e condições mínimas e seguras de trabalho e sobrevivência. Temos que parar de nos mantermos acostumados com a situação e exigir direitos. Quanto vale uma vida e quem lucra com ela?

Aline Carla Lopes Belloti é sócia de LBS Advogados.

Texto publicado em 18/02/2019

Referências

[1] Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2018/09/04/internas_economia,703775/faturamento-dos-clubes-de-futebol-atinge-marca-de-r-5-bilhoes.shtml>. Acesso em 15/02/2019.

[2] Disponível em: <http://www.espn.com.br/noticia/717898_com-venda-de-vinicius-jr-flamengo-tem-receitas-e-lucro-recordes-e-gasta-mais-em-salarios>. Acesso em 14/02/2019.

Aline Carla Lopes Belloti

Sócia da LBS Advogados
E-mail: aline.belloti@lbs.adv.br

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