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“Reforma trabalhista” brasileira contraria convenções internacionais

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) é uma agência da ONU, criada logo após o término da I Guerra Mundial, com o objetivo de melhorar as condições de trabalho e, assim, assegurar paz mundial duradoura. Para isso, edita normas internacionais relativas ao mundo do trabalho e acompanha sua aplicação nos países signatários, buscando, com isso, promover condições dignas de existência. Os países-membros da OIT, pelo simples fato de integrarem este organismo, comprometem-se a cumprir sua Constituição, suas normas e seus princípios fundamentais. Além disso, participam ativamente da criação e do monitoramento da aplicação dessas normas, por meio de representantes governamentais, de organizações de trabalhadores e de empregadores.

O Brasil é membro fundador da OIT e, portanto, tem o dever de respeitar as Convenções que tratam dos princípios fundamentais da organização, independentemente de ter ratificado ou não essas normas. Ademais de seus deveres constitucionais, o Brasil se comprometeu a aplicar nacionalmente a Convenção nº 98, sobre os direitos de sindicalização e  de negociação coletiva, ao ratificar este instrumento em 19 de novembro de 1952.

Como suas atribuições vão além do estabelecimento de normas internacionais, a OIT atua para que as relações laborais nos países-membros reflitam de forma efetiva seus princípios, por meio do cumprimento de convenções e recomendações. Para isso, há um procedimento de controle da aplicação de normas, que verifica o cumprimento por parte dos Estados-membros do padrão laboral convencionado de maneira tripartite no âmbito da OIT.

Este monitoramento compreende a publicação anual, pela Comissão de Peritos para a Aplicação das Convenções e das Recomendações (Comitê de Peritos), de um informe que contém sua análise técnica sobre a aplicação de normas internacionais em determinados países, elaborado com base nas informações prestadas pelos governos, bem como pelos relatórios voluntariamente enviados por organizações de trabalhadores e de empregadores. 

Este procedimento de controle tem por finalidade promover a efetiva aplicação dos estandares internacionais na legislação e nas práticas nacionais. Por isso, além da participação tripartite no momento de prestar informações à OIT, existe um espaço para discussão franqueado às três partes interessadas na relação laboral (governo, trabalhadores e empregadores), que é a Comissão de Aplicação de Convenções e Recomendações. Nesta comissão, que se reune anualmente por ocasião da Conferência Internacional do Trabalho, o informe dos peritos é debatido.

Foi exatamente no âmbito deste procedimento de controle que o último informe do Comitê de Peritos foi divulgado em 7 de fevereiro de 2018(1) . A análise técnica publicada levou em consideração as informações prestadas tanto por organizações de trabalhadores, quanto de empregadores, a saber: Central Única dos Trabalhadores (CUT), Confederação Sindical Internacional (CSI) e Confederação Nacional das Carreiras Típicas de Estado (CONACATE), por um lado; Confederação Nacional da Indústria (CNI) e Organização Internacional de Empregadores (OIE), por outro.

Após sintetizar os relatos apresentados por organizações de trabalhadores e de empregadores, o Comitê de Peritos relembrou o escopo e os objetivos da Convenção nº 98 e observou com preocupação que alguns dispositivos da Lei nº 13.467/2017 contrariam esta norma internacional. Por essa razão, pediu que o governo brasileiro respondesse às  observações feitas pelos atores sociais e que, depois de promover as devidas consultas tripartites, revisasse as alterações legislativas de forma a adequar a normativa trabalhista nacional aos termos da Convenção nº 98.

Especificamente no que se refere à promoção da negociação coletiva e à relação entre acordos e a lei, artigo 4º da Convenção 98 (2), o Comitê de Peritos anotou que:

I- A “reforma trabalhista”, ao estabelecer como princípio geral a prevalência dos acordos e convenções coletivas sobre a legislação, permitindo a redução de direitos a patamares inferiores ao mínimo legal (art. 611-A da CLT), contraria o objetivo da Convenção nº 98 da OIT de promover a negociação coletiva livre e voluntária. Destacou, nesse passo, que a nova lei brasileira não se confunde com previsões legislativas isoladas que possibilitam a redução de direitos via negociação coletiva em circunstâncias limitadas e por razões excepcionais, as quais são admitidas internacionalmente.

II- Ressalta que a mera proibição de negociar direitos constitucionais (art. 611-B) não garante o respeito às convenções nº 98, 151 e 154 da OIT, porque tais normas internacionais definem a negociação coletiva como processo mediante o qual se busca condições de trabalho mais favoráveis do que as já estabelecidas na lei. 

Sobre a relação entre a negociação coletiva e os contratos individuais de trabalho, o Comitê observou que a autorização legal de existência de cláusulas em contratos individuais de trabalho que sejam piores do que as estabelecidas em convenções ou acordos coletivos são contrárias à obrigação de promover a negociação coletiva, conforme estabelecido no artigo 4º da Convenção nº 98. 

Ao discorrer sobre a definição de trabalhador autônomo contida no novo artigo 444-B da CLT, o Comitê lembrou que a Convenção n º 98 se aplica a todos os trabalhadores, com exceção apenas e tão somente de policiais, integrantes das forças armadas  e servidores públicos da administração estatal (artigos 5º e 6º). Assim, a nova legislação é incompatível com as normas internacionais ao excluir o direito de sindicalização e de negociação coletiva dos autônomos.

O informe do Comitê de Peritos da OIT, para além da discussão do défice democrático da “reforma trabalhista”(3) , confirma as inúmeras violações de normas internacionais do trabalho em que incorre a Lei nº 13. 467/2017. Infelizmente, os procedimentos de controle da OIT parecem ser a última arena de discussão tripartite capaz de socorrer a classe trabalhadora, apesar de estar claro que o governo brasileiro desconsiderou a existência da Convenção nº 98 ao realizar as mudanças legislativas.

Do ponto de vista interno, o que resta aos trabalhadores é buscar a proteção de seus direitos nos tribunais com base nas Convenções internacionais, uma vez que essas possuem caráter supralegal, ou seja, a Convenção nº 98 da OIT está hierarquicamente acima da CLT reformada.

Portanto, mesmo que o governo brasileiro ignore as solicitações feitas pelo Comitê de Peritos, há que ser respeitada a força normativa da dos tratados e acordos internacionais, como as Convenções da OIT, que tiveram origem histórica na reflexão acerca das ofensas aos direitos humanos, tudo isso sob pena de retroagirmos ao estado de total desconsideração do trabalhador como pessoa humana. 

Referências

(1) Para acessar a íntegra deste informe, clique aqui.  

(2) Art. 4 — Deverão ser tomadas, se necessário for, medidas apropriadas às condições nacionais, para fomentar e promover o pleno desenvolvimento e utilização dos meios de negociação voluntária entre empregadores ou organizações de empregadores e organizações de trabalhadores com o objetivo de regular, por meio de convenções, os termos e condições de emprego.

(3) Ressalte-se que a realização de consultas a toda a sociedade em matérias relacionadas ao trabalho é prevista na Convenção nº 144 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Brasil em 27 de setembro de 1994 e promulgada pelo Decreto nº 2.518, de 12 de março de 1998.

Meilliane Pinheiro Vilar Lima

Advogada da LBS Advogados
E-mail: meilliane.lima@lbs.adv.br

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