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Trabalhadores no mar de lama

Lira itabirana

O Rio? É doce.
A Vale? Amarga.
Ai, antes fosse
Mais leve a carga.
Entre estatais
E multinacionais,
Quantos ais!
A dívida interna.
A dívida externa
A dívida eterna.
Quantas toneladas exportamos
De ferro?
Quantas lágrimas disfarçamos
Sem berro?

Lira itabirana, poema de Carlos Drummond de Andrade, publicado no jornal O Cometa Itabirano, em 1984.

É impossível para quem acompanhou o noticiário desta semana ficar indiferente ao crime ocorrido na cidade mineira de Brumadinho, com o rompimento da barragem de rejeitos de minério da Mina Córrego do Feijão, pertencente à empresa Vale. “Quantas lágrimas!”

Há pouco mais de três anos do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, também controlada pela Vale, que deixou um rastro de mortes e destruição, Brumadinho relembra imagens que gostaríamos de esquecer, trazendo à baila outros questionamentos, inclusive aqueles que permeiam o mundo jurídico-trabalhista.

O crime não é só ambiental, é crime contra os trabalhadores!

O rompimento da barragem configura-se o maior acidente de trabalho ocorrido no Brasil[1], já na vigência da Lei nº 13.467/2017, conhecida como “Reforma Trabalhista”, e expõe, de forma concreta, toda a crueldade contida na referida lei.

Em boletim divulgado pelo Corpo de Bombeiros em 30 de janeiro[2], as mortes já confirmadas somam 99 e 259 pessoas ainda permanecem desaparecidas. Após 72 horas do desaparecimento, as chances de sobrevivência são bastante reduzidas.

Centenas de famílias de trabalhadores, dentre eles terceirizados e informais, terão que se socorrer da tão atacada Justiça do Trabalho na tentativa de ao menos minorar os danos causados pelo acidente.

Como se darão as indenizações pela morte dos trabalhadores? A empresa se responsabilizará pelos trabalhadores terceirizados? E os trabalhadores sem registro em carteira de trabalho?

O artigo 223-G[3] da Consolidação das Leis do Trabalho, incluído pela “Reforma Trabalhista”, estabelece como serão essas indenizações: o valor será vinculado ao salário contratual recebido pelo trabalhador, tendo como limite máximo cinquenta vezes seu último salário.

A vida humana deveria ser protegida com a mesma avidez que lobistas e congressistas protegem os interesses e pautas do mercado. Infelizmente, para aqueles que aprovaram a “Reforma Trabalhista”, uma vida tem preço e esse preço vil varia de acordo com o salário do empregado.

Imagine-se a seguinte situação: um empregado terceirizado da Vale que trabalhava na operação de minério e que teve sua vida ceifada pelo acidente recebia salário de R$ 1.000,00. Seus familiares, com o ajuizamento de ação trabalhista buscando a reparação do dano moral causado pela morte do parente, receberão, no máximo, R$ 50.000,00.

Em contraponto, a família de um colega desse mesmo trabalhador, contratado diretamente pela mineradora, que estava no local e também foi igualmente vítima fatal do acidente, mas que exercia o cargo de gerente, tendo como última remuneração a quantia de R$ 12.500,00, pode receber indenização até o montante de R$ 625.000,00.

Dois pesos, duas medidas. O salário virou parâmetro para indexar a dor experimentada pelos familiares das vítimas que trabalhavam no local. A vida do trabalhador que recebe salário menor passou a valer menos do que a vida dos mais bem-remunerados. A vida do pobre passou a valer menos por força de lei! “Ai, antes fosse mais leve a carga.”

A limitação quanto ao valor da indenização apenas existe na CLT, mas não na esfera cível. Assim, caso a família de um morador da região que tenha morrido em decorrência do rompimento da barragem procure a Justiça Comum, o julgador terá ampla liberdade na fixação da indenização a ser paga. Portanto, a “Reforma Trabalhista” tornou benéfico ao empresariado lesionar seus trabalhadores. Será mais barato matar um empregado do que, por exemplo, causar algum dano ao patrimônio de terceiro.

Em relação a essa tarifação do dano moral na seara trabalhista, convém mencionar que a Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho – ANAMATRA ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.870[4] perante o Supremo Tribunal Federal questionando sua constitucionalidade. Diante dos recentes acontecimentos, espera-se que o STF manifeste-se de forma contundente, declarando a inconstitucionalidade do art. 223-G.

Causa ainda indignação o pronunciamento do Presidente da República de que o Governo Federal “não tem nada a ver” com o crime ocorrido e de que “a questão da Vale do Rio Doce não tem nada a ver com o Governo Federal”. Não é isso o que determina a Constituição federal:

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

VI – proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas;

VII – preservar as florestas, a fauna e a flora;

XI – registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos de pesquisa e exploração de recursos hídricos e minerais em seus territórios;

É obrigação de todos os entes federativos zelar pelo desenvolvimento sustentável, por um sistema de fiscalização ambiental eficiente. Mas as propostas verificadas nas falas mais recentes do Presidente da República envolvem “flexibilizar” a legislação para atender interesses do grande capital e especuladores do mercado financeiro.  Inclui-se nesse pacote de “modernização”: modificar ainda mais a lei trabalhista; liberar agrotóxicos proibidos no exterior; acelerar a concessão de registros ambientais, e também “desburocratizar” os sistemas de fiscalização e registros existentes para atender interesses de investidores e empresários.

Quase 50% do capital da empresa Vale é formado por investidores estrangeiros. O potencial de geração de riqueza que o Brasil possui é incontável. Porém, infelizmente, os representantes do modelo capitalista predatório buscam sempre a maximização do lucro e a acumulação de renda que aproveita uma parcela pequena de pessoas, em detrimento da preservação do ambiente coletivo, sem preocupação com a ética e com o legado que deixarão para as futuras gerações. “Quantas toneladas exportamos de ferro?”

Ao final, mencionemos as notícias que circulam pelas redes sociais sobre decreto que considera rompimentos de barragens como eventos naturais.

Trata-se do Decreto nº 8.572/2015, editado pela Presidente Dilma Rousseff após o rompimento da barragem em Mariana.

O Decreto realmente considera “como natural o desastre decorrente do rompimento ou colapso de barragens que ocasione movimento de massa, com danos a unidades residenciais”. Contudo, ao contrário do que propagado nas fakes news, a sua finalidade não era a de isentar o responsável pela tragédia da obrigação de reparar os danos causados, considerando o fato como mero evento da natureza. Pelo contrário, o objetivo era apenas incluir o fato em uma das hipóteses previstas na lei para saque do FGTS, para que os trabalhadores afetados pudessem garantir sua subsistência.

Assim como em Mariana, a apuração das causas do acidente em Brumadinho, a análise da extensão dos danos e, por fim, a responsabilização dos autores demandará tempo, burocracia e, possivelmente, longos processos judiciais.

Os moradores e trabalhadores de Brumadinho não têm condições de aguardar a resolução judicial e política da tragédia. Necessitam, com urgência, de meios para subsistência – afinal, muitos perderam tudo o que tinham – e, para isso, carecem imediatamente de toda e qualquer importância financeira que lhes for disponibilizada.

Diversas são as possibilidades de se levantar os valores do FGTS, sendo um deles a ocorrência de desastre natural, que necessita de regulamentação posterior. Cabe, assim, ao Governo Federal regulamentar as situações que caracterizam tais desastres, sendo que, historicamente, tais situações foram modificadas e incluídas apenas por decretos presidenciais, desde a vigência da referida Lei nº 8.036/90.

Assim foi o que fez a Presidência da República à época do rompimento da barragem de Mariana, que segue sem solução ou prisão de nenhum dos responsáveis. Agora, contudo, presencia-se um governo conivente, que falha em fiscalizar, que critica “os caprichos dos fiscais”[5] e defende facilitar o desenvolvimento de atividades empresariais que ceifam vidas e destroem o meio ambiente.

Nem a maior das indenizações[6] é capaz de ressarcir todos os danos causados. Não há preço que pague pela vida e pelos danos das pessoas que terão que suportar a vida sem os seus entes queridos. O Brasil segue enlutado. “Quantas lágrimas disfarçamos sem berro?”

Leandro Thomaz da Silva Souto Maior é Sócio de LBS Advogados, integrante da Lado.

Fernanda Teodora Sales de Carvalho é Advogada de LBS Advogados, integrante da Lado.

Artigo publicado em 1º de fevereiro de 2019

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Referências

[1] SOUZA, Felipe; FELLET, João. Brumadinho é maior acidente de trabalho já registrado no Brasil. BBC Brasil. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47012091>. Acesso em: 30/01/2019.

[2] TAJRA, Alex (Ed.). Número de mortos em Brumadinho sobe para 99; 259 estão desaparecidos. UOL. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2019/01/30/numero-de-mortos-em-brumadinho-sobe-para-99-259-estao-desaparecidos.htm>. Acesso em: 30/01/19.

[3] Art. 223-G.

Ao apreciar o pedido, o juízo considerará:

(…)

§ 1º Se julgar procedente o pedido, o juízo fixará a indenização a ser paga, a cada um dos ofendidos, em um dos seguintes parâmetros, vedada a acumulação:

I – ofensa de natureza leve, até três vezes o último salário contratual do ofendido;

II – ofensa de natureza média, até cinco vezes o último salário contratual do ofendido;

III – ofensa de natureza grave, até vinte vezes o último salário contratual do ofendido;

IV – ofensa de natureza gravíssima, até cinquenta vezes o último salário contratual do ofendido.

[4] Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=367459>. Acesso em 30/01/2019

[5] Disponível em: <https://www.metro1.com.br/noticias/politica/65709,bolsonaro-diz-que-vai-acabar-com-capricho-de-fiscais-ambientais.html>. Acesso em 31/0/2019.

[6] Destaque-se a atuação do Ministério Público do Trabalho. Com o fim de assegurar indenizações e reparações aos empregados atingidos pelo acidente, MPT ajuizou ação cautelar pleiteando fosse bloqueado da Vale de R$ 1.600.000.000,00 (um bilhão e seiscentos milhões de reais). A finalidade é de assegurar o pagamento de salários aos familiares até o reconhecimento do falecimento dos empregados desaparecidos; pagamento de auxílio-funeral e seguro acidente, traslados de corpos e sepultamentos. Em decisão, o Juízo do Trabalho de Betim, Minas Gerais, determinou o bloqueio de R$ 800.000,00 (oitocentos mil reais). Ocorreram por ordem da Justiça Comum outros bloqueios que totalizam 11.000.000.000,00 (onze bilhões de reais).

Fernanda Sales de Carvalho

Advogada da LBS Advogados
E-mail: fernanda.carvalho@lbs.adv.br

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