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Sob o domínio da “fraudemania”: votação do relatório da MP nº 871/19 – Uma outra reforma da previdência, texto de Júlia Lenzi

Está prevista para hoje, dia 9 de maio de 2019, a votação do relatório de Deputado Paulo Eduardo Martins (PSC-PR) sobre a Medida Provisória nº 871/2019 na Comissão Mista. Segundo a imprensa, a votação foi adiada para que os parlamentares chegassem a um acordo sobre o texto que, para além de instituir o Programa Especial para Análise de Benefícios com Indícios de Irregularidade e o Programa de Revisão de Benefícios por Incapacidade – prevendo, ademais, bônus de desempenhos para servidores e médicos peritos que atuarem nesses processos –, promove substanciais alterações de ordem material e procedimental, sobretudo no tocante aos requisitos para acesso a benefícios previdenciários.

 

Em nossas análises sobre a PEC nº 6/2019, a proposta de reforma da previdência apresentada em fevereiro pelo Governo Bolsonaro, temos destacado a existência de conjunto de dispositivos que constituem um corpo estruturante, algo como a “espinha dorsal” da proposta, que o organiza em seus propósitos e assegura coesão às medidas. Observamos que sob tais dispositivos não se admite qualquer tipo de emenda ou processo de negociação, ficando eles adstritos às outras propostas de alteração normativa que, embora também gravosas e, não raro, com forte repercussão negativa junto à população, não se apresentam como estruturantes da diretriz reformista. Essa tática de “ceder os anéis para assegurar os dedos” também parece ser a orientação seguida pela relatoria da MP nº 871/2019, o que nos demanda atenção redobrada para sua tramitação.

 

Nesse sentido, é bastante interessante observar que o relator propôs mudanças em alguns pontos da MP, acatando sugestões de emendas de outros parlamentares. A exigência de que o beneficiário abrisse mão de seu sigilo bancário quando do pedido de concessão de Benefício de Prestação Continuada (BPC) é retirada sob o argumento de que “o poder público já dispõe de outros meios para verificar a hipossuficiência dos potenciais beneficiários do BPC”, lembrando, ainda, o relator que “nosso sistema de proteção de direitos fundamentais ligados à privacidade e à intimidade só admite o afastamento dessas garantias individuais de sigilo quando há apuração de irregularidades e investigações de ilícitos penais, jamais de forma prévia, como previsto no texto da MP”.

 

Também sob orientação do princípio do devido processo legal, o relator estende o prazo de defesa para o segurado que for notificado de que seu benefício está sob suspeita de 10 para 30 dias, acolhendo a proposta apresentada por muitos parlamentares. Nesse mesmo sentido, considerou “inconveniente” (sic) e injusta a previsão que permitia a suspensão cautelar do benefício suspeito de irregularidade se houvesse prova pré-constituída, mesmo que não fosse possível fazer a comunicação ao beneficiário. Em respeito à garantia do direito adquirido e à orientação da proteção à maternidade e à primeira infância, também não é acolhido o dispositivo que previa o prazo decadencial de 180 dias para requerimento do salário-maternidade, reestabelecendo o prazo prescricional de 5 anos.

 

Por fim, o relator também acatou a proposta de supressão da revogação do art. 101, §1º, I, da Lei nº 8.213/91, concordando não ser factível exigir retorno ao mercado de trabalho, em razão de eventual resultado de exame pericial, do aposentado por invalidez e do pensionista por invalidez com 55 anos ou mais de idade ou que já tenham gozado do benefício por 15 anos, contados da data de concessão.

 

Todavia, em que pese a essas modificações apontadas, seguindo a tese que propomos, verificamos a manutenção das propostas que dificultam o acesso aos benefícios, além da corroboração integral do amplo projeto de revisão, o que denota a permanência dos dispositivos estruturantes de diretriz restritiva dos direitos previdenciários como orientação geral da MP nº 871/2019, razão pela qual a entendemos como uma outra reforma da previdência já em curso.

 

Nesse sentido, é ilustrativo apontar a manutenção da exigência de início de prova material para a comprovação de união estável e dependência econômica dos potenciais beneficiários da pensão por morte e do auxílio-reclusão (inclusão do §5º ao art. 16 da Lei nº 8.213/91), o que representa um retrocesso de décadas na tratativa da temática, sobretudo quando se toma em conta às normas de Direito de Família, que dispensam esse tipo de formalidade. Sob o argumento de que “os recursos públicos são finitos”, o relator tece comparação entre a proposta de criação do novo requisito e a exigência de início de prova material para comprovação de tempo de serviço (art. 55, §3º da Lei n. 8.213/91), demonstrando, no mínimo, desconhecimento quanto às especificidades de cada situação, que em nada se assemelham. Além disso, propõe “aperfeiçoar o texto proposto pelo Executivo”, sugerindo que se estipule que “o início de prova material deve ter sido produzida por período não superior aos 24 meses anteriores ao óbito ou ao recolhimento à prisão”, com o propósito de evitar que se conceda benefícios com base em “documentos antigos”. Sugere, ainda, que se crie um dispositivo para esclarecer que “a exigência do §5º não exclui a necessidade de comprovação da união estável por pelo menos dois anos antes do óbito do segurado, para assegurar ao dependente o direito a mais que quatro meses de pensão”.

 

Também é o discurso sobre a necessidade de “medidas amargas a curto prazo” para solução dos supostos problemas de caixa da previdência social que sustentam a supressão da possibilidade readquirir a carência por meio de contribuições por períodos proporcionais. Nesse sentido, a MP altera o art. 27-A da Lei nº 8.213/91 para dispor que, na hipótese da perda da qualidade de segurado, este deverá contar, a partir da nova filiação à Previdência Social, com os períodos integrais de carência para fins de concessão dos benefícios de auxílio-doença, aposentadoria por invalidez, salário-maternidade e auxílio-reclusão. A temática da carência tem sofrido modificações restritivas constantes por meio das Medidas Provisórias: inicialmente, a partir da nova filiação, previa-se sua recuperação após o cumprimento de 1/3 do período exigido, fração que foi majorada para 1/2, ou seja, metade, e que, agora, na proposta endossada pelo relator, deixa de existir, passando-se a exigir “novo” cumprimento integral do requisito. Em uma realidade de aumento dos índices de desemprego e informalidade e de crescimento das vagas ofertadas por meio de contratos de trabalho atípicos, sobretudo os intermitentes, impulsionados pela reforma trabalhista, essa proposta de alteração dificulta sobremaneira a possibilidade de acesso à proteção previdenciária pelos trabalhadores e, sobretudo, pelas trabalhadoras.

 

Ainda no tocante ao acesso aos benefícios previdenciário, é preciso destacar a manutenção da instituição da carência de 24 meses, exigidos pela MP nº 871/2019, para que os dependentes do segurado tenham acesso ao benefício de auxílio-reclusão. Ademais, a nova redação do art. 80 da Lei nº 8.213/91 passa a restringir a sua concessão, que passa a estar condicionada ao cumprimento de pena em regime fechado e ao não recebimento de pensão por morte ou salário-maternidade, além de prever nova fórmula de aferição do critério de “baixa renda”: não mais se leva em conta o último salário de contribuição, mas sim a média aritmética simples dos últimos salários de contribuição apurados no período de 12 meses anteriores ao recolhimento à prisão. Nesse ponto, é interessante notar que o próprio relator reconhece que o número de 24 contribuições é superior às demais hipóteses de carência de benefícios não programáveis, como o auxílio-doença, mas a justifica como “medida de combate às fraudes”.

 

No mesmo sentido de “combate às fraudes”, encontramos um dos pontos mais polêmicos do relatório, que diz respeito à utilização exclusiva dos dados do Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS) para a comprovação da qualidade de segurado especial. De forma sintética, segundo os dispositivos da MP, o cadastro seria feito mediante autodeclaração, que estaria submetida à ratificação e atualização anual. De acordo com o texto, a autodeclaração deve ser ratificada por “entidades públicas credenciadas, que são as Entidades Executoras do Programa nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural na Agricultura Familiar e na Reforma Agrária (Pronater), prevendo, ainda, a revogação da declaração fundamentada de sindicato ou de colônia de pescadores como instrumento hábil à comprovação do exercício de atividade rural (art. 106, III, da Lei nº 8.213/91).

 

Para além do aumento expressivo dos requisitos burocráticos necessários à comprovação da condição de segurado especial, que destoam completamente da sua realidade social, verificamos que os dispositivos em questão têm um claro sentido de esvaziamento dos sindicatos e colônias de pescadores como entidades representativas dos interesses dessas categorias de trabalhadores; por meio da instrumentalização do discurso da tecnicidade, coloca-se sobre eles presunções de má-fé e suspeitas de atuação fraudulenta, o que se revela incompatível com a lógica constitucional.

 

Por meio desses breves apontamentos sobre o relatório de 60 páginas que deverá ser votado logo menos na Comissão Mista, gostaríamos de chamar a atenção para o fato de que, sob o domínio da “fraudemania”, parlamentares parecem estar dispostos a promover verdadeira reforma previdenciária via medida provisória, instrumento legislativo pouco afeto ao rito democrático, impondo severas e injustificáveis restrições para acesso aos benefícios previdenciários por segurados e seus dependentes. Por óbvio que fraudes devem ser apuradas e combatidas, mas isso certamente não passa pela tratativa de todo segurado ou dependente como “potencial fraudador dos cofres públicos”. E, seguramente, isso também não pode implicar aumento injustificado nos requisitos para acesso de benefícios que asseguram proteção social a famílias em clara situação de vulnerabilidade, como é o caso da pensão por morte, auxílio-reclusão e dos benefícios pagos aos segurados especiais.

 

A busca desenfreada pelas honrarias dos cortes de despesas na guerra contra as políticas públicas sociais deve acender em nós um alerta: direitos previdenciários são direitos fundamentais sociais, e não benesses estatais que podem ser restringidos ou retirados ao sabor das políticas econômicas de austeridade. Resgatar o paradigma de cidadania de segurados e seguradas é tarefa urgente, sob pena de nos depararmos com injustiças incorrigíveis, como nos lembra o filme Eu, Daniel Blake.     

 

Júlia Lenzi é Consultora de LBS Advogados, Professora Universitária e Doutoranda em Direito do Trabalho e da Previdência Social pela USP.

           

 

 

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