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Férias e pandemia

Desde meados de março de 2020, a pandemia nos colocou em um universo paralelo ao que estamos acostumados nomear de rotina de vida. Mesmo para aqueles que em nenhum momento puderam se ausentar do trabalho, ou até para aqueles que têm o privilégio de poder trabalhar remotamente, a vida profissional e social tomou uma nova configuração cheia de limitações e adaptações.

O risco da exposição para os que se mantem trabalhando presencialmente e se locomovendo via transporte público e o excesso de trabalho e a dificuldade de dissociação do ambiente da casa e do trabalho para os que se mantêm em casa não deixam dúvidas da sobrecarga e fadiga mental a que estão submetidas as pessoas que trabalham.

Em tempos “normais”, o direito ao gozo das férias garantido constitucionalmente[1] é instrumento de proteção da dignidade, saúde e segurança do trabalhador, assim como meio essencial de resguardo na qualidade da prestação dos serviços, considerando que o descanso regenera as energias físicas e psicológicas, consequentemente resultando melhor dedicação.

Mas será que as férias gozadas no período de pandemia são capazes de gerar esse mesmo resultado positivo? Estando a vida social de todos com diversas restrições, a resposta mais provável a esta pergunta é não. O período do gozo de férias é destinado para a o exercício do lazer, da vida social, a dedicação de atividades prazerosas, especialmente as experimentadas no âmbito social e familiar, o que notadamente não é possível de ser realizado plenamente por conta da disseminação do contágio do coronavírus.

Não bastasse a limitação natural desse direito do trabalhador, o Governo Federal editou a Medida Provisória nº 927[2], que autorizou que os empregadores concedessem férias de forma antecipada, até mesmo aquelas não adquiridas, sem qualquer limitação de períodos, para que os trabalhadores se mantivessem afastados do trabalho. Tal medida vigorou até 19 de julho de 2020, o que permitiu que trabalhadores adiantassem até 5 períodos de férias, dentre vencidas e futuras. Esse trabalhador não terá descanso pelos próximos 5 anos de trabalho, podendo ainda ter descontados os períodos não adquiridos em caso de rescisão nesse meio tempo.

Também houve a edição da Medida Provisória nº 936[3], que foi convertida na Lei nº 14.020/20, que autorizou a suspensão do contrato de trabalho e a redução da jornada proporcional por 180 dias (considerando as prorrogações a partir de março a dezembro/2020).

A Lei, além de reduzir os salários recebidos durante o período de pandemia (o que consequentemente reduz o valor de recebimento de férias e do terço constitucional adicional), altera o contrato de trabalho para o período de aquisição/concessão, não se computando o período de suspensão. Dessa forma, o trabalhador que ficou 180 dias com o contrato de trabalho suspenso no ano de 2020 terá direito apenas à metade do período de férias e ainda calculada sobre os valores recebidos no período.

Tal situação certamente será alvo de muitas discussões na Justiça do Trabalho, considerando que, além das violações já apontadas na legislação brasileira, há também dissonância com as determinações das convenções da Organização Internacional do Trabalho[4] relativas a esse tema.

Direitos do consumidor e da consumidora

A impossibilidade de plena fruição do gozo de férias não atingiu apenas a esfera trabalhista, pelo contrário, aqueles que estavam planejando viajar tiveram seus sonhos frustrados, deparando-se com voos cancelados, estabelecimentos fechados, inclusive com países fechando as fronteiras, tudo para evitar a disseminação vírus.

Assim, os viajantes precisaram lidar com outra dor de cabeça: o cancelamento da passagem e o reembolso do dinheiro. Como resposta imediata, foi promulgada a MP nº 925, que, apesar de possibilitar o reembolso do dinheiro, aplica situações pouco favoráveis aos consumidores, de forma mais severa que o previsto no Código de Defesa do Consumidor.

A MP dispõe que para os voos cancelados entre 19/03/2020 e 31/12/2020, deverá ser reembolsado o valor da passagem aérea no prazo de 12 meses, devolvido devidamente atualizado. Caso o passageiro não se interesse pelo reembolso, poderá receber em créditos, com possibilidade de utilização por até 18 meses.

Por sua vez, aquele passageiro que desistir de voo entre 19/03/2020 e 31/12/2020 poderá optar pelo reembolso, também no prazo de 12 meses, mas sujeito ao pagamento de eventuais penalidades contratuais; ou créditos de valor correspondente ao da passagem aérea, sem penalidades contratuais, também no prazo de 18 meses.

Aqueles que haviam se planejado para shows, comprado ingressos de eventos, parques temáticos, ou alguma outra forma de lazer, também podem ser prejudicados.

Isso porque foi editada a MP nº 948[5], que dispõe que o cancelamento de eventos nesse período, incluindo shows e espetáculos, não obrigará a empresa a reembolsar os valores já despendidos pelo consumidor, permitindo que as empresas remarquem o evento no prazo de 12 meses, disponibilizem o crédito para outro evento, ou negociem entre as partes a forma de devolução.

Como se nota, o exercício do direito de férias neste período de pandemia teve o seu intuito desvirtuado e produzirá efeitos prejudiciais sobre direitos constitucionalmente garantidos ao longo dos próximos anos, seja ao trabalhador, como ao consumidor.

Campinas, 28 de janeiro de 2021.

REFERÊNCIAS

[1] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm – Vide artigo 7º, inciso XVII, link oficial disponível em 20 de janeiro de 2021, às 09:11, horário de Brasília.

[2]  https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/141145 – Vide artigo 3º, link oficial disponível em 20 de janeiro de 2021, às 09:11, horário de Brasília.

[3] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L14020.htm . – Vide artigo 3º, link oficial disponível em 20 de janeiro de 2021, às 09:11, horário de Brasília.

[4] https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_235863/lang–pt/index.htm – Íntegra, link oficial disponível em 20 de janeiro de 2021, às 09:11, horário de Brasília.

[5] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Lei/L14046.htm

Louise Helene de Azevedo Teixeira

Advogada da LBS Advogados
E-mail: louise.teixeira@lbs.adv.br

Matheus Cunha Girelli

Advogada da LBS Advogados
E-mail: matheus.girelli@lbs.adv.br

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