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Sabe quanto nosso conforto custa para os entregadores de aplicativos? Às vezes, até a vida!

Quem nunca ficou com preguiça de cozinhar e pediu uma pizza em um sábado à noite qualquer?

Hoje, convido todos a pensarmos um pouco mais em toda a estrutura invisível (propositadamente) que existe por detrás dessa comida quentinha que chega em nossa casa. No capitalismo, a vida flui como um grande teatro de marionetes. As coisas se movem, e não vemos as mãos que as movimentam e os interesses delas.

Bom, vamos aos fatos: se você possui rede social em 2020, provavelmente deve saber que há uma greve dos entregadores por aplicativos (Rappi, Loggi, Uber Eats, iFood etc.) programada para ocorrer amanhã, 01/07/2020. Ainda que você seja da parcela da população que acredita que greve tem que ser feita em dia não útil, ou que é coisa de gente que não gosta de trabalhar, vou te mostrar alguns dados.

Você sabe que enquanto consumidores temos o direito de exigir que as empresas tenham responsabilidade social? E que essa responsabilidade representa, para além daquelas frases bonitas dos slogans, a conduta que a empresa adota com os prestadores de serviço, funcionários fornecedores e nas relações públicas?

Essa palavrinha mágica, que as companhias adoram estampar em letras garrafais nos sites, na maioria das vezes, não reflete a realidade das condutas praticadas com os funcionários e prestadores de serviços, considerando que adotam procedimentos e padrões empresariais que visam burlar direitos sociais, diminuindo o custo de suas atividades e operações. E eles, os peixes grandes do capitalismo, ocultam essas condutas, inclusive de nós, consumidores.

O motivo: nós temos poder. O poder de escolher onde gastamos nosso dinheiro, escolhendo empresas que têm valores e condutas éticas.

O que deixamos de saber é sinônimo de sono tranquilo. Pensar as estruturas é algo que nos deixa perplexos, tira a paz e o chão. Uma certeza temos: as empresas têm perícia em nos vender uma imagem ética, pautada pelas legislações que respeitam o ser humano, quando, na verdade, a bússola aponta sempre para onde está o lucro.

O que você imaginaria de empresas que permitem que os “prestadores de serviço”, “autônomos” trabalhem em média 12 horas, 14 horas por dia, em plena pandemia, sem oferecer qualquer respaldo em relação a condições adequadas de trabalho? Sem oferecer licença quando adoecem e, mais importante, sem fornecer equipamentos de proteção individual para assegurar a saúde e a segurança dos trabalhadores?

Normalmente não nos perguntamos, enquanto recebemos a alimentação quentinha em nossas residências em um dia chuvoso, se o entregador que fez aquele “corre” já jantou, se tomou um copo de água, ou se está com o pé seco… Não costumamos problematizar essas minúcias. Deveríamos!

Considerando que a atividade de entregas foi nesses tempos de pandemia considerada essencial, a demanda em torno do serviço subiu exponencialmente, implicando riscos maiores para os entregadores, que utiliza moto ou bicicleta.

Certo é que, independentemente do meio de locomoção, para realizar a demanda de trabalho, existe a constante exposição aos acidentes e adoecimentos ligados à atividade. Na cidade de São Paulo, em 2019, foram 297 motociclistas que perderam a vida no trânsito[1]. A Secretaria de Trânsito de São Paulo apontou que o número de acidentes envolvendo motociclistas foi 50% maior em relação aos meses de março e abril de 2019[2].

Ou seja, ainda que haja menos carros circulando na cidade em razão do isolamento, a exposição dos entregadores piorou, ocasionando sobrecarga que mata. Só na cidade de São Paulo 58 motociclistas perderam a vida, apenas em março e abril de 2020.

A quantidade de acidentes envolvendo os motociclistas está ligada a vários fatores: aumento do desemprego, que força muitas pessoas em situação de vulnerabilidade a se cadastrarem em aplicativos de entregas; política de remuneração desses aplicativos que oferecem bonificações para aumento na quantidade de entregas; maior demanda em virtude do isolamento social; aumento de compras via internet, dentre outros.

Esses dados causam espanto. Por quê? Ao lembrarmos do maior acidente de trabalho já registrado no Brasil, de responsabilidade da Vale do Rio Doce, em Brumadinho, 270 trabalhadores perderam a vida de uma só vez. Onze ainda estavam desaparecidos. Após esse trágico marco, muito se discutiu em relação à responsabilização da Vale, que recebeu ações judiciais de acionistas até no exterior, em virtude da omissão de informações e prática empresarial espúria. Existe um ponto em comum entre as condutas de grandes empresas, seja na seara ambiental, ou trabalhista: o dumping social[3].

Fazendo um paralelo entre os dois casos, o número de motociclistas mortos apenas em São Paulo, por ano, equivale a um acidente da Vale do Rio Doce em Brumadinho. Questiona-se qual a responsabilidade das empresas que administram os aplicativos de entrega em relação a esses números? Nenhuma. É isso mesmo. Por incrível que pareça, a argumentação das plataformas é de que elas apenas oferecem o software.

No entanto, enquanto consumidores, ao termos conhecimento das condições de trabalho dos entregadores, possuímos condições de escolher os produtos e serviços oferecidos por empresas que não infringem direitos sociais. Considerando todos os pontos aqui abordados, nós consumidores, no dia 01/07/2020, teremos a chance de exercer um papel fundamental: decidir se compactuamos com práticas empresariais que aviltam direitos sociais, ou continuar fortalecendo os lucros dessas plataformas.

E como apoiar e fortalecer esse movimento? Os movimentos que organizam a paralisação orientam que os consumidores devem recusar os cupons de desconto oferecidos pelos aplicativos ou mesmo não pedir entregas neste dia.

Se a compreensão em torno dessa luta por direitos é clara, então, enquanto consumidores, nosso direito de escolher empresas que respeitam direitos humanos e especialmente a dignidade dos trabalhadores é soberana. É apenas por meio da compreensão de como tais condutas são danosas à toda sociedade que a voz dos consumidores e dos trabalhadores podem ser ouvidas pelas empresas.

É possível rechaçar as condutas dessas empresas que praticam a exploração humana de forma predatória, travestida de empreendedorismo e trabalho autônomo. Ao recebermos os cupons de descontos dos aplicativos no dia 01/07/2020, fiquemos ligados!

Imaginemos que, do outro lado, na ponta da linha, tem um ser humano que está buscando visibilidade, garantias mínimas e dignas de trabalho, que se preocupa se vai voltar vivo para casa, enquanto faz o seu “corre”.

Campinas, 30 de junho de 2020.

REFERÊNCIAS

[1] CET. Acidentes de trânsito: relatório anual. São Paulo, 2019. 58 f. Disponível em: http://www.cetsp.com.br/media/1058619/2019.pdf. Acesso em: 24/06/2020.

[2] HENRIQUE, Alfredo (ed.). Morte de motociclistas cresce durante período de quarentena em SP. 2020. Disponível em: https://agora.folha.uol.com.br/sao-paulo/2020/05/morte-de-motociclistas-cresce-durante-periodo-de-quarentena-em-sp.shtml. Acesso em: 24/06/2020.

[3] O dumping social é uma ferramenta utilizada pelas empresas, que implica em concorrência desleal, objetivando a diminuição do preço final do produto mediante a redução de custos relativos a mão de obra, em função da aplicação de legislações trabalhistas brandas ou, até mesmo, inexistentes, com implicações que denotam o desrespeito à dignidade da pessoa humana e aos direitos e benefícios trabalhistas mínimos.

Fernanda Sales de Carvalho

Advogada da LBS Advogados
E-mail: fernanda.carvalho@lbs.adv.br

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