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Violência presidencial contra o jornalismo profissional: a responsabilidade além do Estado

Na mesma semana em que o Supremo Tribunal Federal manteve indefinidos os julgamentos de dois importantes processos para o jornalismo profissional, o presidente da República, no dia 23 de agosto, voltou a desrespeitar toda a categoria.

Questionado por jornalista do jornal “O Globo” por que a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, recebeu R$ 89 mil de Queiroz e esposa, sem resposta, o mandatário partiu para a agressão verbal e moral contra o profissional: “Minha vontade é encher tua boca com uma porrada”, classificando-o ainda como “safado”.

Em efeito manada previsível e em muitas das vezes calculado, a internet do ódio reverberou fortemente a manifestação presidencial, a ponto do canal de notícias BBC News, no dia 24, noticiar que “Em demonstrações de apoio a Bolsonaro, brasileiros dizem, por exemplo, que jornalistas merecem ‘tomar porrada na boca’ e dizem que o presidente ‘só errou’ em não agredir o repórter”[1].

E o que isso tem a ver com os processos RE nº 1.209.429 e RE nº 1.075.412, que tiveram os julgamentos adiados, respectivamente, nos dias 14 e 21 de agosto, por pedido de vista do Ministro Alexandre de Moraes?

O primeiro deles, o RE nº 1.209.429, corresponde ao Tema nº 1.055 da Tabela de Repercussão Geral do Supremo, que impõe ao Plenário daquela Corte debate sobre a responsabilidade civil do Estado em relação a profissional da imprensa ferido, em situação de tumulto, durante cobertura jornalística. Já o segundo, o RE nº 1.075.412, corresponde ao Tema nº 995 da mesma TRG e trata da controvérsia relativa à liberdade de expressão e ao direito à indenização por danos morais, devidos em razão da publicação de matéria jornalística na qual terceiro entrevistado imputa a prática de ato ilícito a determinada pessoa. Trataremos do primeiro.

Este Tema nº 1.055 alcança maior relevância em situações como a do domingo passado, quando o ato de violência contra o jornalista profissional é fomentado pelo próprio agente público, inclusive como estratégia de governo. Não à toa, no próprio domingo, a filósofa Márcia Tiburi denunciou em seu Twitter: “Bolsonaro passou da ameaça ‘cute’ (sinal de arminha durante a campanha) para uma ameaça mais densa: ‘encher a cara de porrada’ de uma jornalista. E isso é um ato de governo”.

Como temos defendido, em situações de violação à integridade física, moral ou à sua imagem, o jornalista e a jornalista têm direito à justa reparação na prática de seu ofício, como qualquer outro cidadão e seja quem for o ofensor (Constituição, arts. 5º, incisos V e X, e 37, § 6º, e Código Civil, arts. 186, 187 e 927). Exposto ao assédio ou ao adoecimento, sem que o meio de comunicação lhe proporcione as necessárias condições de segurança e higiene, depois do pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do Recurso Extraordinário nº 828.040, já não há muito a se dizer: o trabalhador que atua em atividade de risco tem direito à indenização em razão de danos dela decorrentes, independentemente da comprovação de culpa ou dolo do empregador.

Crimes perpetrados contra a imprensa, por sua vez, seja qual for sua natureza, não podem e não devem ser tolerados. As autoridades públicas deverão ser devidamente notificadas e os casos processados, como demanda a sistemática penal.  Vale ressaltar que o item 5 do art. 7º da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950, tipifica como crime de responsabilidade o presidente da República “servir-se das autoridades sob sua subordinação imediata para praticar abuso do poder, ou tolerar que essas autoridades o pratiquem sem repressão sua”.

Ainda mais quando essas práticas, passíveis da pena de perda do cargo, com inabilitação, até cinco anos, para o exercício de qualquer função pública (art. 2º da Lei nº 1.079/1950), são de iniciativa do próprio presidente — até como mandante de seu séquito de seguidores — e voltam-se contra ao livre exercício do direito humano fundamental de acesso à informação, inscrito no art. 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Já tarda o momento de os agentes públicos e políticos nacionais darem dura resposta ao presidente da República, enquadrando os seus atos de violência ao jornalismo profissional como crimes contra o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais, tudo como define a lei dos crimes de responsabilidade, nominando-os como devidamente o são: atos de governo.

Brasília, 24 de agosto de 2020.

REFERÊNCIAS

[1] https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2020/08/24/reporter-tem-que-apanhar-mesmo-ataque-de-bolsonaro-gera-onda-de-ameacas-fisicas-a-jornalistas.htm

Ricardo Quintas Carneiro

Advogada da LBS Advogados
E-mail: ricardo.carneiro@lbs.adv.br

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