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A Conciliação Judicial Trabalhista como Instrumento de Flexibilização de Direitos dos Trabalhadores

A reforma trabalhista vem ocorrendo em diversas frentes; mediante projetos de lei, decisões judiciais e também pela atuação administrativa do governo. Não se trata meramente de um projeto formalizado, acabado, com início, meio e fim. Pelo contrário, há uma espécie de onda conservadora, mais que isso, reacionária, que vem alterando ora frontalmente, ora sub-repticiamente, os direitos conquistados pelos trabalhadores.

Minha intenção aqui é retornar a tema que já abordei em artigo anterior, juntamente com Nasser Ahmad Allan¹, a Conciliação Judicial Trabalhista. Trata-se de questão importante, e inserida dentro deste contexto, pois se de um lado através da Conciliação não se “reformam” propriamente os direitos dos trabalhadores, de outro lado se impede sua plena recomposição e, ainda mais, incentiva o empresariado ao descumprimento da legislação.

Em linhas gerais, tanto a Justiça do Trabalho, que nos interessa mais de perto, quanto o Conselho Nacional de Justiça – CNJ, entendem e proclamam que a conciliação é uma ótima forma de solução dos conflitos, uma vez que abrevia a tramitação processual, mas mais do que isso, dizem: é um instrumento de pacificação social.

O problema que enfrentamos, no entanto, é que a referida pacificação social é parametrizada pelo Judiciário com duas réguas: uma que verifica o numero de processos encerrados através da conciliação; e outra, que verifica o valor envolvido nos acordos. Não há régua que verifique a efetiva satisfação dos direitos dos trabalhadores; não há régua que verifique o total do real desconto fornecido aos empregadores quando das conciliações. Pior do que isso: ao que parece não há interesse real do Judiciário Trabalhista em criar estas réguas.

Apesar disto, o Judiciário faz medições interessantes, valendo a pena acompanharmos algumas delas. O CNJ divulgou no final de 2016, pela primeira vez, os números de conciliações ao longo de todo um ano, de todo o Judiciário brasileiro, ano base 2015 – Relatório Justiça em Números, 12ª Edição². O índice médio de conciliação em todo o Judiciário foi de 11% das sentenças, aproximadamente 2,9 milhões de processos finalizados por acordo, num universo de 27,2 milhões de sentenças. A Justiça do Trabalho foi a que logrou obter maior índice: 25,3% (1 milhão de acordos) das sentenças e decisões.

Além destes, o CNJ divulga outros números importantes. No relatório “Justiça em Números – 2016”, sempre tomando como base o ano de 2015, consta a existência de 15.773 unidades judiciárias em todo o País, sendo que apenas 1.570 destas pertencem à Justiça do Trabalho, perfazendo 10% do total. Com relação número de processos ingressados no ano, a Justiça do Trabalho respondeu por 14,9% do total, 4.058.477 novos processos, de um total nacional de 27.280.287 casos novos. No mesmo período a Justiça Estadual recebeu 18.911.657 novos processos, 69,3% do total. Da mesma forma, com relação aos casos pendentes, também temos a liderança da Justiça Estadual, com um saldo de 59.030.179 casos pendentes, 79,8% do total de todo o Judiciário, 73.936.309 casos. A Justiça do Trabalho tinha 5.049.890, 6,8% do total, atrás também da Justiça Federal, com seus 9.073.741 casos.

Estes números revelam fato digno de nota: ao contrário do que se apregoa comumente no reino livre da internet e dos Simpósios Jurídicos e Empresariais, a Justiça do Trabalho não é a grande responsável pela litigiosidade do País. Da mesma forma, podemos afirmar que também não é uma Justiça eminentemente pró-empregado, lugar em que estes sempre “ganham” alguma coisa.

Fosse tão a favor dos empregados como se apregoa, o número de processos trabalhistas seria muito maior. Em 2015 tivemos, como visto, pouco mais que 4 milhões de casos novos na Justiça do Trabalho. Porém, pelos dados do Cadastro Geral de Empregos – CAGED do Ministério do Trabalho e Emprego³, no ano de 2015 ocorreram 19.316.072 (dezenove milhões trezentos e dezesseis mil e setenta e dois) desligamentos em todo o País. Como justificar que mais de 15 milhões de trabalhadores deixaram de entrar com Reclamação Trabalhista, nas quais “ganhariam algo”? Evidente que salvo exceções de praxe, e sempre as há, a imensa maioria dos trabalhadores ingressa com reclamação na Justiça do Trabalho apenas quando se sente injustiçado e pensa que algum direito seu foi desrespeitado. Tivesse a régua do CNJ informado os números de procedência da reclamações julgadas em 2015 com certeza poderíamos comprovar a afirmação acima para longe de qualquer dúvida. Mas a análise empírica do trabalho diário, há décadas, no Judiciário Trabalhista, nos confirma isto que é revelado pelo contraste entre 19 milhões e 4 milhões.

A ligação entre estas análises e o problema da Conciliação é que, se o Judiciário Trabalhista não é, ao contrário do que o “senso comum” da internet tenta impor, inundado por trabalhadores que visam obter benesses indevidas de uma Justiça irresponsável e paternalista, a pacificação social preconizada pela defesa candente da Conciliação levada a cabo por este mesmo Judiciário Trabalhista, não se justifica.

Não se justifica pelo seguinte: se apenas 25% dos desligamentos geram reclamações trabalhistas (desprezando aqui o número de trabalhadores que reclamam enquanto ainda empregados, bem como desconsiderando a possibilidade de trabalhadores demorarem um certo tempo para ingressar com a reclamação e a ajuizarem apenas no ano seguinte ou depois – visto que ano a ano estes números certamente se diluem), e se 75% dos desligados se contentam com as verbas recebidas durante e ao término do contrato, não há situação geral a ser pacificada. A maior parte dos contratos de trabalho se resolve em paz. A minoria destes vai para o Judiciário. E neste caso quem não está em paz são estes trabalhadores que não lograram obter satisfação e pensam genuinamente, como já demonstramos, que seus direitos foram efetivamente desrespeitados.

A grande maior parte dos empregadores correspondentes a este um quarto dos casos está em paz. E está em paz pois deixou, e deixa, de cumprir com seus deveres conscientemente, intencionalmente.

Basta que se analisem quem são os assim chamados grandes litigantes da Justiça do Trabalho, para que validemos a tese.

Outro trabalho do CNJ, o texto “100 Maiores Litigantes 2012”?, último levantamento disponível, constata-se que os 100 maiores litigantes da Justiça do Trabalho representaram, sozinhos, 12% do total de reclamações trabalhistas propostas naquele ano; são milhares de reclamações contra empresas como, por ordem os 10 primeiros, CNA – Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil; Caixa Economica Federal; União; Petrobrás, Banco Santander Brasil S/A, Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – EBCT, Banco Bradesco S/A, Vale S/A, Banco do Brasil S/A e Fazenda Nacional.

O Tribunal Superior do Trabalho publicou também, em 2016?,estudo listando as partes com mais de 100 processos lá em tramitação. Despontam no ranking, em ordem: União, Petrobrás, Caixa Economica Federal, Banco do Brasil S/A, EBCT, Banco Santander Brasil S/A, Itau Unibanco S/A, Funcef, Banco Bradesco S/A, Petros, Contax S/A, PREVI, Telemar, Vale S/A, Volkswagen, Brasil Foods S/A, OI S/A, HSBC Bank Brasil S/A, Telefonica Brasil S/A e assim por diante.

Tratam-se estes grandes litigantes de empresas públicas, da própria União, e de empresas gigantes, extremamente bem organizadas e rentáveis. Todas conhecidas. Por quais razões figuram tão “bem” classificadas nestes rankings? Será porque seus empregados tem a compreensão (que seria falsa, como já vimos) que podem “ganhar alguma coisa” na Justiça do Trabalho? Ou será que elas realmente descumprem a legislação costumeiramente e por isso são levadas ao Judiciário e frequentemente condenadas? Não parece razoável imaginar que os trabalhadores entrem com estas ações por pensarem que alguma coisa, tenham ou não direito, a Justiça do Trabalho lhes dará. Vejam que muitas empresas que foram as dez mais processadas do ano de 2011 são também as que tem mais processos no TST em 2015. Estas empresas levam seus processos até a última instância do Judiciário Trabalhista. Elas recorrem do que é possível recorrer. Grande parte dos trabalhadores que contra elas litigam terá de aguardar toda a tramitação ordinária e extraordinária da ação para receber o que lhe seja reconhecido como de direito.

Esta publicação do TST faz parte das metas do Plano Estratégico da Justiça do Trabalho – 2015/2020, “destinada a identificar e reduzir em 2% o acervo dos dez maiores litigantes em relação ao ano anterior, em 2016”?.

Fica claro que o Judiciário quando se impõe metas de redução de números de processos mediante conciliação está, na prática, ajudando estas grandes empresas a diminuirem seus estoques de processos e a obterem descontos para a liquidação de seus débitos. Quando o Judiciário se move e chama os grandes litigantes para negociar em massa, evidente que irá envidar todos os esforços e técnicas disponíveis para obter o atingimento da meta.

O resultado evidente é que passa a ser mais barato para os empregadores deixarem de cumprir com suas obrigações trabalhistas, em massa. Até porque ao final a Justiça do trabalho os ajudará a obter desconto. O incentivo que a Justiça dá é ao descumprimento da lei.

A ineficiência natural do Judiciário, sua incapacidade de lidar com os conflitos em grande escala, força-o a procurar soluções modernas para os processos, e a Conciliação, neste momento, é a última bolacha do pacote mágico. Infelizmente, as réguas do Judiciário são meramente objetivas e quantitativas; nenhuma delas se presta a averiguar quanto de renúncia há por parte dos trabalhadores neste esforço.

A preservação dos direitos dos trabalhadores não está entre os objetivos da Conciliação nem entre os objetivos da Justiça do Trabalho. A tal pacificação social é buscada com o ferimento do princípio da irrenunciabilidade, aceitando os trabalhadores valores rebaixados através do esforço do Judiciário, que lhes explica, detalhadamente, que ou aceita o acordo proposto ou, pela ineficiência do próprio Judiciário, terá de esperar anos e anos para receber o que lhe for de direito.

É necessário que a Justiça do Trabalho se humanize, enxergue a figura do trabalhador como sujeito de um drama real, que procurou o Judiciário não como aventura (como comprovam os números), mas como forma de proteção de seu patrimônio jurídico, como defesa de seus direitos e que passe a tentar enxergar os dados de qualidade nos processos judiciais e não os dados meramente quantitativos. Qual o total da renúncia dos trabalhadores nos acordos feitos? Qual o percentual de sucesso das reclamações trabalhistas dirigidas aos grandes litigantes e outros? Aonde de fato falta paz no mundo do trabalho? Sem a vontade de buscar a resposta a estas e outras perguntas pertinentes, a Justiça do Trabalho continuará exercendo papel importante como último recurso institucional para a defesa dos trabalhadores contra a exploração capitalista, porém, cada vez mais se notabilizando como batedora de metas.

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¹ALLAN, N. A; BEIRO, N. Ataque aos Direitos dos Trabalhadores: A Conciliação Judicial Trabalhista, in: RAMOS, Gustavo Teixeira (org) et al. “A Classe Trabalhadora e a Resistência ao Golpe de 2016”, Praxis, 2016, p. 340

²http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/83676-relatorio-justica-em-numeros-traz-indice-de-conciliacao-pela-1-vez, consultado em 16/03/2017

³http://bi.mte.gov.br/eec/pages/consultas/evolucaoEmprego/consultaEvolucaoEmprego.xhtml#relatorioSetorEco, pesquisa realizada em 23/03/2017 às 13:50h, com os parâmetros relativos ao ano de 2015

?http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/100_maiores_litigantes.pdfconsultado em 23/03/2017

?http://www.tst.jus.br/documents/10157/14446079/RP+2015+12+Dezembro+%28Ordem+Qtd+Processos%29.pdfconsultado em 23/03/2017

?http://www.csjt.jus.br/noticiadestaque/-/asset_publisher/6Mvh/content/justica-do-trabalho-publica-listas-com-maiores-litigantes-no-pais?redirect=%2Finicio%2F-%2Fasset_publisher%2Fh7PL%2Fcontent%2Fcoleprecor-elege-comissoes-para-atuarem-no-csjt%3Fredirect%3D%2F, consultada em 23/07/2017

 

Nilo Beiro

Sócio da LBS Advogados
E-mail: nilo@lbs.adv.br

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