A AIDS (Acquired Immune Deficiency Syndrome) ou, em português, SIDA (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) foi identificada e registrada no início da década de 80. Ela surgiu a partir de um vírus chamado SIV, encontrado no sistema imunológico dos chimpanzés e do macaco-verde africano. Apesar de não deixar esses animais doentes, o SIV é um vírus altamente mutante.
Há ainda muitas dúvidas quanto às siglas, por isso começamos a diferenciar HIV e AIDS, que não são sinônimos. O HIV (Vírus da Imunodeficiência Humana) é o vírus causador da AIDS, que ataca células específicas do sistema imunológico. A AIDS é a doença causada pelo HIV. Em um estágio avançado da infecção pelo HIV, a pessoa pode apresentar diversos sinais e sintomas, além de infecções oportunistas (pneumonias atípicas, infecções fúngicas e parasitárias) e alguns tipos de câncer.
“É provável que a transmissão para o ser humano aconteceu em tribos da África central que caçavam ou domesticavam chimpanzés e macacos-verdes”[1], diz o infectologista Jacyr Pasternak, do Hospital Beneficência Portuguesa, em São Paulo. O vírus HIV é transmitido principalmente através de relações sexuais sem o uso de preservativo, transfusões de sangue contaminado, agulhas não esterilizadas e de mãe para filho, durante a gravidez, no parto ou amamentação[2]. Outros fluidos corporais, como saliva e lágrimas, não transmitem o vírus.[3]
Desde a sua descoberta, por mais séria que seja a doença, mesmo passados 40 anos desde então, o HIV/AIDS têm tido grande impacto na sociedade contemporânea, tanto como doença quanto como fonte de discriminação. Há muitos equívocos sobre o HIV/AIDS, tais como a crença de que ela pode ser transmitida pelo contato casual não sexual. A doença também se tornou sujeita a muitas controvérsias envolvendo as religiões, as questões de gênero e a orientação sexual, além de ter atraído a atenção médica e a política internacional.
Calcula-se que mais de 75 milhões de pessoas foram infectadas em todo o mundo até o final de 2019[4]. Aproximadamente 34,7 milhões de pessoas até 2020 morreram.[5] Contudo, em que pese ser tratada como pandemia internacional, os medicamentos antirretrovirais têm prevenido novas infecções pela doença e proporcionado àquelas que vivem com HIV melhor qualidade de vida.
Conscientes do preconceito histórico existente, o Poder Legislativo e a sociedade civil se organizaram para criar legislações protetivas, de modo a garantir a esses indivíduos acesso aos direitos fundamentais, tais como à saúde pública, à educação, ao lazer e ao trabalho. No ano de 1989, foi criada a Declaração dos Direitos Fundamentais da Pessoa Portadora do Vírus da Aids. O documento, aprovado pelo Ministério da Saúde, culminou na adoção de diretrizes para proteção das pessoas que vivem com HIV, garantindo a continuidade da vida civil, profissional, sexual e afetiva desses indivíduos.
No ano de 2014, a Lei nº 12.984 foi promulgada com a expectativa de tipificar determinadas condutas cometidas contra as pessoas que vivem com o vírus, tais como: recusar, procrastinar, cancelar ou segregar a inscrição ou impedir que permaneça como aluno em estabelecimento de ensino; recusar emprego ou trabalho; exonerar ou demitir de seu cargo ou emprego; segregar no ambiente de trabalho ou escolar; divulgar a condição de que vive com o vírus ou de doente de AIDS – com intuito de ofender a dignidade – e recusar ou retardar atendimento de saúde.
A Lei nº 7.670/1988, por sua vez, estendeu às pessoas que vivem com HIV benefícios como auxílio-doença e aposentadoria por invalidez. O art. 6º, inciso XIV, da Lei nº 7.713/88, também assegura a isenção do Imposto de Renda e o ressarcimento de valores retroativos há cinco anos anos a partir da comprovação da infecção.
De igual modo, as pessoas que vivem com vírus HIV não podem ser vítimas de preconceito no seu local de trabalho/emprego, pois o direito à honra é garantia fundamental de todo cidadão, conforme art. 5º, X, da Constituição.
Infelizmente, é comum que algumas empresas dispensem os seus empregados quando ficam cientes de que o trabalhador vive com HIV. A dispensa não pode ter cunho subjetivo e não pode ter como fundamento o preconceito em relação a qualquer doença ou infecção estigmatizante. A questão chega a ser tão recorrente que a Súmula nº 443 do TST determina: “Presume-se discriminatória despedida de empregado portador do vírus HIV ou de outra doença grave que suscite estigma ou preconceito. Inválido o ato, o empregado tem direito à reintegração no emprego.”
O Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Grijalbo Fernandes Coutinho afirma que, nas relações de trabalho, não obstante seja o empregador proprietário do negócio, (…) o poder por ele exercido não é despótico, nem avaliza conduta tendente a promover qualquer discriminação contra os seus empregados.[6] No mesmo sentido, o art. 4º da Lei nº 9.029/95 garante ao empregado, alvo de dispensa discriminatória, o direito à reparação pelo dano moral e à reintegração com ressarcimento integral de todo o período de afastamento, mediante pagamento das remunerações devidas.
A discriminação pode ocorrer tanto após a rescisão do contrato de trabalho, quanto no momento pré-contratual, ou seja, na admissão de um emprego. Cita-se o caso em que a Segunda Turma do TST condenou a Pullmantur S.A. a indenizar um assistente de garçom que teve de realizar teste de HIV para ser contratado para trabalhar em navios de cruzeiro marítimo.[7] Nesse sentido, vale a pena frisar que a Portaria nº 1.246/2010 dispõe, em seu art. 2º, que “Não será permitida, de forma direta ou indireta, nos exames médicos por ocasião da admissão, mudança de função, avaliação periódica, retorno, demissão ou outros ligados à relação de emprego, a testagem do trabalhador quanto ao HIV”. No presente caso, a Turma fixou a indenização no valor de R$ 10.000,00 (dez mil) reais.[8]
A discriminação se revela também durante o contrato de trabalho. No artigo “Trabalho e HIV”, é citado caso de trabalhador encarregado da reposição de alimentos de um buffet de um restaurante, que, após tornada pública sua condição, foi imediatamente impedido de se aproximar dos pratos.[9]
O Índice de Estigma 2019 constatou que 13,3% dos entrevistados que vivem com HIV tiveram a natureza de seu trabalho alterada ou uma promoção negada. Não obstante, foi demonstrado que 19% das pessoas nem se candidatavam a uma vaga; 7% foram forçadas a fazer um teste de HIV ou revelar seu estado para candidatar-se a um emprego ou se aposentar.[10]
Por receio de qualquer represália, ou atitude discriminatória no ambiente de trabalho, os empregados tendem a omitir a convivência com o vírus HIV. E, quando assumem, não sendo demitidos, podem sofrer de invisibilidade e isolamento.
Situações de abandono e tantos fatos atuais carregados de discriminação tornam a reflexão intrigante. Ainda hoje existem pessoas que julgam outras pelo estado de saúde. Ideias preconceituosas originárias da década de 80 permanecem fortes, em virtude do medo do contágio. Os ambientes coorporativos ainda são resistentes a uma melhor formação e posicionamento sobre o tema. Para Lua Mansano, mulher trans que vive com HIV, “Todo mundo tem dó de quem tem câncer. Com o HIV, as pessoas têm nojo. Nojo mesmo.”[11]
Com relação às políticas de saúde pública, o programa brasileiro de combate à disseminação do vírus HIV, que, por décadas, foi referência internacional na luta contra a Aids, sofreu, em 2019, intervenções do atual governo.
Por meio de um decreto assinado pelo presidente, pelo ministro da Economia Paulo Guedes e pelo então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, o nome do Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais foi alterado para Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis, rebaixando a área de HIV/Aids a uma coordenação. Ou seja, o novo departamento agora também se ocupa de outras doenças, como Hanseníase e Tuberculose, infecções que nada têm em comum com as IST e HIV.
Mesmo com tantas dificuldades, continuam os profissionais, inclusive os do Brasil, na luta para encontrar um método altamente eficaz contra a doença. Em julho de 2020, pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) apresentaram o resultado de uma pesquisa realizada com um homem de 34 anos, diagnosticado com o vírus HIV, que, tratado com um novo coquetel de medicamentos, não apresenta carga viral detectável há mais de dois anos.
Apesar de se tratar de uma doença controlada atualmente, ainda existem desafios a serem enfrentados e o segredo é a conscientização constante da população. O preconceito possui diversas origens, pode decorrer da falta de informação, como pode advir da falta de caráter. Para os desinformados, existe o esclarecimento, as políticas públicas de conscientização, o diálogo aberto e respeitoso sobre o tema em todos os segmentos sociais. Para a discriminação oriunda da falta de ética, da maldade, da má-fé, existem os meios corretivos judiciais e extrajudiciais para satisfação do direito básico de qualquer pessoa, o respeito à sua dignidade.
[1] https://super.abril.com.br/mundo-estranho/como-surgiu-a-aids/
[2] Markowitz, edited by William N. Rom ; associate editor, Steven B. (2007). Environmental and occupational medicine 4ª ed. Philadelphia: Wolters Kluwer/Lippincott Williams & Wilkins. p. 745. ISBN 978-0-7817-6299-1
[3] HIV and Its Transmission. Centers for Disease Control and Prevention. 2003.
[4] Jesús, Erin Garcia de (4 de junho de 2021). After 40 years of AIDS, here’s why we still don’t have an HIV vaccine. Science News (em inglês). 1
[5] Preliminary UNAIDS 2021 epidemiological estimates – GLOBAL HIV STATISTICS (PDF). UNAIDS 2020. Julho de 2021
[6] https://trt-10.jusbrasil.com.br/noticias/391571348/rede-de-supermercados-e-condenada-por-dispensa-discriminatoria-de-empregado-com-hiv
[7] https://www.tst.jus.br/web/guest/-/empresa-de-cruzeiros-%C3%A9-condenada-por-exigir-teste-de-hiv-para-contrata%C3%A7%C3%A3o-de-gar%C3%A7om
[8] https://www.tst.jus.br/web/guest/-/empresa-de-cruzeiros-%C3%A9-condenada-por-exigir-teste-de-hiv-para-contrata%C3%A7%C3%A3o-de-gar%C3%A7om
[9] SUGUIMATSU, Marlene T. Fuverki. HIV e AIDS no ambiente laboral: visibilidade, discriminação e tutela jurídica de direitos humanos. Revista eletrônica [do] Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, Curitiba, v. 3, n. 27, p. 75-103, jan./fev. 2014.
[10] https://unaids.org.br/wp-content/uploads/2019/12/2019_12_06_Exec_sum_Stigma_Index-2.pdf
[11] https://www.terra.com.br/noticias/educacao/carreira/hiv-no-trabalho-preconceito-torna-pauta-invisivel-para-gestores,44d478c48b703be041f2d5bb6958c846hys6lced.html
Andrey Rondon Soares
Advogado da LBS Advogados
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Fernando Henrique Roriz
Advogado da LBS Advogados
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