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Planos de saúde serão obrigados a garantir procedimentos fora do rol exemplificativo da ANS

O chamado rol de procedimentos da ANS é uma lista que estabelece quais tratamentos devem ser assegurados pelos planos de saúde a seus usuários. Antes da Lei nº 14.454, publicada no dia 22 de setembro de 2022, havia discussão se o rol era uma lista exemplificativa ou taxativa, obrigando ou não os planos de saúde a cobrir tratamentos que lá não estivessem relacionados.

Agora, quem precisa de tratamento de saúde que não consta no rol poderá exigir do plano a sua cobertura, desde que o tratamento tenha eficácia, baseada em evidência científica e plano terapêutico.

O rol exemplificativo garante a cobertura de vários tratamentos fundamentais e mais modernos à saúde de pessoas com deficiência, com doenças raras, pessoas LGBT, idosos, dentre outros.

 

Sobre o que se trata a Lei nº 14.454/22

A Lei nº 14.454/22 altera a lei sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde para estabelecer critérios que permitam a cobertura de exames ou tratamentos de saúde que não estão incluídos no rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar.

 

O que é o rol da ANS

É uma lista, elaborada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar, contemplando os procedimentos considerados indispensáveis ao diagnóstico, tratamento e acompanhamento de doenças e eventos em saúde, que deve ser de observância obrigatória de todos os planos de saúde.

Esse rol deve ser atualizado a cada dois anos.

Antes da Lei nº 14.454, havia divergência se o rol era uma lista exemplificativa – ou seja, com a cobertura mínima, possibilitando aos planos de saúde aprovação de outros procedimentos ou tratamentos que não estivessem elencado ou taxativa – cobertura máxima a qual os planos de saúde estariam obrigados.

Agora o rol é considerado exemplificativo. No entanto, para a segurança do usuário do plano de saúde e também para a manutenção da sustentabilidade do plano, foram estabelecidos alguns requisitos para que se tenha acesso aos procedimentos e eventos não listados no rol.

 

Quais os requisitos para os planos cobrirem os tratamentos não listados no rol da ANS?

1) comprovada eficácia, baseada em evidência científica e plano terapêutico;

2) recomendação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias do SUS ou de órgão de avaliação de tecnologia em saúde de outros países, com renome internacional, e desde que aprovada a utilização do procedimento nesse país.

O médico deve fornecer ao paciente todas essas informações, para viabilizar a aprovação do tratamento pela operadora do plano.

 

E se a operadora do plano não autorizar o tratamento indicado pelo médico?

Em caso de negativa, os usuários devem, inicialmente, requerer à operadora do plano a reconsideração dessa decisão para que o pedido seja avaliado por uma junta médica.

Caso a operadora mantenha a negativa, o usuário pode abrir uma reclamação contra a operadora no site da Agência Nacional de Saúde ou buscar o Poder Judiciário, com ajuda de um advogado especialista ou da defensoria pública.

 

Quem se beneficia?

Todos nós, que utilizamos o sistema de saúde. Seja ele público ou privado. A nova Lei garante a responsabilidade do tratamento ou procedimento pelo plano de saúde, sem gerar sobrecarga ao Sistema Único de Saúde e mantendo a responsabilidade dos planos de saúde.

 

Quem foi responsável pela criação dessa lei?

Enquanto quase toda sociedade permanecia alheia aos impactos causados pela taxatividade do rol da ANS, a luta pela aprovação da Lei nº 14.454/22 foi personificada por um grupo de mães atípicas.

 

O que significa mãe atípica?

O termo “atípicas” se contrapõe à ideia de normalidade, buscando designar aquelas que vivenciam a maternidade de filhos com deficiência. Se a maternidade exige dedicação e cuidado, a maternidade atípica exige resiliência e luta contra o preconceito, contra a negligência do poder público, pela inclusão em todos os espaços e por acessibilidade. Uma luta permanente por quebrar as barreiras que impedem o acesso de seus filhos a direitos básicos.

Antes da promulgação da Lei, longos e dolorosos processos já estavam em curso no Judiciário para que pessoas com diferentes deficiências tivessem acesso aos tratamentos prescritos pelo médico que não eram cobertos pelos planos de saúde.

Após uma derrota no âmbito do Superior Tribunal de Justiça – o qual não só referendava os planos de saúde, como fechava sobremaneira as portas do Judiciário –, as mães atípicas levaram a luta para o Supremo Tribunal Federal e para o Congresso Nacional.

Foi graças a essa vigília permanente e à luta coletiva e organizada dessas mulheres que agora todos nós seremos beneficiados. A elas devemos muito mais que agradecimentos: nos cabe, minimamente o compromisso de retirá-las do isolamento e da invisibilidade.

Devemos ser ativos na luta contra o machismo e contra o capacitismo, duas estruturas de poder que se interseccionam produzindo uma sociedade em que 78% dos homens abandonam a família após um filho ter o diagnóstico de síndrome rara ou deficiência.

Cabe a nós, ainda, cobrar e exigir políticas públicas de amparo às pessoas com deficiência que incluam também as mães atípicas.[1]

 

#roltaxativomata – Relembre a campanha e como ela surgiu

Em junho deste ano, mães atípicas iniciaram movimento para se opor fortemente à tese de que o rol da ANS seria taxativo, impondo cobertura apenas daquilo que estaria previsto no rol, e não mera cobertura mínima de atendimento dos planos de saúde.

A frase célebre do movimento foi o “rol taxativo mata”, reverberada por pacientes, familiares, influenciadores.

O movimento surgiu após voto apresentado pelo Ministro Luis Felipe Salomão, em setembro de 2021, em julgamento iniciado no Superior Tribunal de Justiça (EREsp nºs 1.886.929 e 1.889.704), que iria definir a obrigatoriedade dos planos de saúde em cobrirem procedimentos e eventos além do previsto pela ANS.

Em que pese às manifestações e comoção nacional sobre o tema, por maioria de votos, o STJ entendeu que o rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar seria, em regra, taxativo, com impossibilidade de obrigar as operadoras de planos de saúde em arcar com procedimento não constante no rol da ANS, com exceção que só seria possível diante da recomendação médica, sem substituto terapêutico no rol, e que tivesse comprovação de órgãos técnicos e aprovação de instituições que regulam o setor.

O entendimento que prevaleceu no STJ foi a de que a aplicação do rol taxativo protegeria os beneficiários contra aumentos excessivos, uma vez que a imposição pelo Judiciário de cobertura de procedimentos fora da lista resultaria em aumento do custo do plano de saúde, com função da ANS em promover o estudo técnico pertinente no exercício da sua função regulatória para incluir os procedimentos que entendesse imprescindíveis para a cobertura dos planos de saúde em âmbito nacional.

 

 

Consequências do julgamento do STJ

Além da negativa de métodos mais eficazes para o tratamento e que estivessem fora do procedimento listado no rol da ANS, com a decisão também era legítima a limitação dos atendimentos das terapias pelos planos de saúde, principalmente em relação aos que necessitam de terapias constantes, mesmo as incluídas no rol da ANS, consagrando a validade de um nítido abuso das operadoras, que não promoviam o atendimento adequado e necessário para aquele paciente.

O resultado do julgamento no STJ foi aterrador, inconsolável E desumano. Prejudicava milhares de atendimentos em curso, revertendo toda uma jurisprudência, do próprio Tribunal e de outros tribunais, que dizia exatamente o contrário: que os planos de saúde deveriam arcar também com os procedimentos não elencados no rol da ANS e necessários para o tratamento do segurado.

 

 

Quais as medidas adotadas após o julgamento?

Não por outra razão, além dos recursos promovidos no próprio STJ, também foram propostas diversas ações no Supremo Tribunal Federal, buscando reverter a decisão e a consequente ampliação da cobertura de procedimentos pelas operadoras de planos de saúde.

Por meio de intervenção conhecida como amicus curiae, representamos a Central Única dos Trabalhadores defendendo a natureza exemplificativa do rol da ANS.

Junto ao Poder Legislativo, foi proposto o Projeto de Lei nº 2.033/22, aprovado em ambas as casas do Congresso Nacional, que a transformou na Lei nº 14.454/22.

A Lei também prevê a necessidade de comprovação científica da eficácia do procedimento, prescrição médica e certificação de órgãos técnicos que atuam no setor, de âmbito nacional e internacional.

No entanto, a grande diferenciação com o julgamento do STJ é a desnecessidade de demonstrar que o rol da ANS não prevê substituto terapêutico para o tratamento prescrito ou esgotados os procedimentos previstos no rol.

Certo é que, além de garantir o tratamento mais eficaz para o paciente, com a cobertura obrigatória pelos planos de saúde e que não irão depender do reconhecimento – quase sempre tardio – da ANS, não há qualquer estudo direto que comprove o aumento nos custos dos planos de saúde para o consumidor, até porque o Judiciário já intervia regularmente nas negativas dos planos e forçava a cobertura, e nem por isso se reverteu o lucro estrondoso das operadoras de planos de saúde.

 

Conheça os impactos para os direitos da população trans

Os direitos da população transgênero estão intimamente ligados aos direitos à saúde.  Uma vez que orientação sexual parte de um conceito ligado à inconformidade entre o sexo biológico e o gênero pertencente, a pessoa trans precisa de uma série de intervenções médicas e psicológicas para manutenção de sua dignidade.

Medidas como a cirurgia de readequação de gênero, processo transexualizador e terapias hormonais e psicológicas são comuns, quando não essenciais na vida da população trans.

Muitos dos procedimentos são cobertos pelo SUS, todavia, a fila de espera é grande, fazendo com que os transgêneros busquem nos planos de saúde o aparato necessário para realização dos procedimentos médicos.

Havendo rol taxativo para a cobertura dos planos de saúde, procedimentos como readequação de gênero estariam excluídos da assistência por não fazer parte da listagem definida pela ANS.

Muitas vezes os procedimentos possuíam negativa administrativa e eram obtidos apenas por meio de ação judicial. Até mesmo quando levada ao Poder Judiciário a questão encontrava resistência.

Em uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, os desembargadores da 9ª Câmara negaram um pedido de uma mulher transexual para que o plano de saúde custeasse uma cirurgia de redesignação sexual com fundamento no fato de que o plano não é obrigado a pagar pela operação, porque se trata de um “procedimento meramente estético”, que não consta do rol de procedimentos obrigatórios da ANS e nem do contrato.[2]

Toda a recuperação psíquica da autora foi desprezada sob o frágil argumento contratual atrelado a um rol que não pode ser fixo, mas dinâmico, tendo em vista todas as mudanças provenientes de avanços tecnológicos que permitem outros e melhores tratamentos daqueles previstos pela ANS.

Com a decisão do STJ (Processos nº EREsp 1886929 e EREsp 1889704) que tornava taxativo o rol de procedimentos cobertos pelos planos de saúde, a tendência era que esse tipo de negativa aumentasse.

Com o advento da Lei nº 14.454/22, foi determinado que as operadoras de assistência à saúde poderão ser obrigadas a oferecer cobertura de exames ou tratamentos que não estão incluídos no rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar, afastando a decisão da Corte Superior.

Sobreviver para a população trans já é um enorme desafio, uma vez que há uma violência estrutural que persegue esse segmento no Brasil (entre janeiro de 2008 e setembro de 2021, 1.645 pessoas dessa comunidade foram vítimas de homicídio).[3]

Esperamos que, com o rol exemplificativo, existam fôlego e luta para a conquista do “ser” trans, para que essa minoria esteja empoderada de direitos e com acesso a uma infraestrutura que vá muito além dos direitos básicos

 

Brasília e Campinas, 29 de setembro de 2022.

 

[1] Colaborou com este texto Ludmila Galdino Cândido, mãe atípica.

[2] https://www.jota.info/tributos-e-empresas/saude/cirurgia-de-redesignacao-sexual-e-meramente-estetica-16112021

[3] https://agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/pessoas-trans-batalham-na-justica-por-acesso-a-direitos-ja-reconhecidos/

Luciana Barretto

Sócia da LBS Advogados
E-mail: luciana.barretto@lbs.adv.br

Rivadavio Guassú

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