Via crucis – O STF e o Piso Salarial Nacional da Enfermagem

O Piso Salarial Nacional do Enfermeiro, do Técnico de Enfermagem, do Auxiliar de Enfermagem e da Parteira foi previsto na Lei nº 14.434, de 4 de agosto de 2022. O valor fixado foi o de R$ 4.750,00 para o primeiro, base de cálculo para os demais, no percentual de 70% para o Técnico de Enfermagem e 50% para o Auxiliar de Enfermagem e para a Parteira.

No entanto, na ADI nº 7.222, ajuizada pela Confederação Nacional de Saúde, Hospitais, Estabelecimentos e Serviços (CNSAÚDE), em sessão virtual realizada entre os dias 9 e 16 de setembro de 2022, por maioria, o Pleno do Supremo Tribunal Federal decidiu referendar liminar deferida pelo Ministro Roberto Barroso, relator, para suspender os efeitos da Lei, até que sejam esclarecidos os seus impactos, essencialmente os econômicos quer sobre o orçamentos públicos, quer sobre os serviços privados de saúde que complementam o sistema de saúde público.

Depois de forte mobilização social, para solucionar o entrave central na declaração da constitucionalidade da Lei nº 14.434/22, em dezembro de 2022 foi aprovada a Emenda Constitucional nº 127, que direciona recursos do superávit financeiro de fundos públicos e do fundo social para financiar o piso. Desse modo, ficou definido que a complementação do excedente orçamentário dos Estados, Municípios, entidades e redes particulares que atendem pelo menos 60% dos pacientes do Sistema Único de Saúde será financiada pela União.

Já em maio de 2023, empossado o novo governo, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei nº 14.581, que garante os fundos pecuniários necessários à implementação do piso da Lei nº 14.434/22. Por essa Lei nº 14.581/23, foi aberto ao Orçamento da Seguridade Social da União, em favor do Ministério da Saúde, crédito especial no valor de sete bilhões e trezentos milhões de reais, para assistência financeira complementar aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para o pagamento do Piso Salarial dos Profissionais da Enfermagem, nacional.
Por esses fatos novos legais e orçamentário gerados, agentes políticos como o Senador Fabiano Contarato (PT-ES) e a própria Advocacia Geral da União provocaram o STF pela reconsideração da liminar referendada em setembro de 2022.

Em 15 de maio de 2023, o relator, Ministro Roberto Barroso, acolheu parcialmente os pedidos, para revogar parcialmente a medida cautelar anteriormente deferida, a fim de que sejam restabelecidos os efeitos da Lei nº 14.434/22, com exceção da expressão “acordos, contratos e convenções coletivas” constante do seu art. 2º, § 2º, para que seja implementado o piso salarial nacional por ela instituído, nos seguintes termos:

(i) em relação aos servidores públicos civis da União, autarquias e fundações públicas federais (art. 15-B da Lei nº 7.498/1986), a implementação do piso salarial nacional deve ocorrer na forma prevista na Lei nº 14.434/2022;
(ii) em relação aos servidores públicos dos Estados, Distrito Federal, Municípios e de suas autarquias e fundações (art. 15-C da Lei nº 7.498/1986), bem como aos profissionais contratados por entidades privadas que atendam, no mínimo, 60% de seus pacientes pelo SUS (art. 15-A da Lei nº 7.498/1986), a implementação da diferença resultante do piso salarial nacional deve se dar em toda a extensão coberta pelos recursos provenientes da assistência financeira da União;
(iii) em relação aos profissionais celetistas em geral (art. 15-A da Lei nº 7.498/1986), a implementação do piso salarial nacional deve ocorrer na forma prevista na Lei nº 14.434/2022, a menos que se convencione diversamente em negociação coletiva, a partir da preocupação com eventuais demissões.

Por essa nova decisão, o Ministro Barroso ainda ressaltou, quanto aos efeitos da decisão, que: “quanto aos efeitos da presente decisão, em relação aos profissionais referidos nos itens (i) e (ii), eles se produzem na forma da Portaria GM/MS nº 597, de 12 de maio de 2023; e, em relação aos profissionais referidos no item (iii), para os salários relativos ao período trabalhado a partir de 01º.07.2023”. Justificou a benesse ao setor privado na pretensa garantia do tempo necessário para a adoção das ações e acordos necessários, no sentido de se evitar uma “crise” (sic!) no setor.

Essa decisão foi submetida ao Pleno do STF para referendo, em sessão virtual designada entre os dias 19 e 26 de maio de 2023. No dia 24 de maio, todavia, o julgamento foi suspenso, por pedido de vista regimental do Ministro Gilmar Mendes, depois do Ministro Edson Fachin divergir do Relator, para revogar integralmente a decisão cautelar originalmente deferida.

O ponto da situação

O Ministro Barroso revogou parcialmente a liminar original, de 2022, que havia barrado a implementação do piso, restabelecendo os efeitos da Lei nº 14.434/22. Manteve parcialmente suspensa, todavia, a eficácia do seu art. 2º, § 2º , que proíbe o rebaixamento do valor do piso por negociação coletiva, ficando mantida a proibição da sua estipulação rebaixada por acordos individuais.

Em sessão virtual do Pleno, o Ministro Edson Fachin discordou da suspensão parcial imposta pelo relator, votando pela plena eficácia da Lei, como concebida, fruto de amplo diálogo social e concertação política. Recorrendo aos princípios da proteção da dignidade do trabalhador e da igualdade constitucional, entendeu que o piso salarial nacional deveria ser implementado na forma da Lei nº 14.434/22, para todas as situações concretas, sejam elas no setor público ou privado.

Nunca é de se esquecer o compromisso da sociedade brasileira em melhorar a vida de seus trabalhadores e trabalhadoras na saúde, que se mantiveram firmes e fortes no salvamento de vidas, diante da recente pandemia global da Covid-19.

A vista regimental suscitada pelo Ministro Gilmar Mendes, além de frustrar a rápida realização desse compromisso social, gera insegurança jurídica entre os agentes públicos, patronais e profissionais envolvidos, por mais que a decisão do Ministro Barroso tenha plena eficácia no restabelecimento parcial da Lei.

A Emenda Regimental nº 58/22 do STF impõe ao Ministro Gilmar Mendes o prazo fatal de 90 dias para que apresente o seu voto-vista. Cabe-nos a cobrança para que a Lei nº 14.434/22, ao fim da sua via crucis, ressuscite plena, sem as máculas impostas pelo STF aos trabalhadores e trabalhadoras envolvidos.

 

Brasília, 26 de maio de 2023.

 

Ricardo Carneiro

Sócio da LBS Advogadas e Advogados 

João Victor Soares

Estagiário da LBS  Advogadas e Advogados

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