Em dezembro de 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF), em decisão vinculante nos autos da Ação Declaratória de Constitucionalidade n.º 58 (ADC 58), determinou que a atualização dos créditos trabalhistas, a partir da distribuição da ação, deve se dar exclusivamente pela Taxa Referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia (Taxa Selic). Afirmou, ainda, que a incidência de qualquer outro índice de atualização implicaria em bis in idem, prática vedada pelo ordenamento jurídico.
Na prática, o STF excluiu o direito à correção monetária dos créditos trabalhistas, de acordo com a inflação, a partir da distribuição da ação e substituiu o direito aos juros de mora de 1% ao mês previsto no Artigo 39, §1º, da Lei 8.177/91, pela Taxa Selic. Embora possa se argumentar que a Taxa Selic englobaria os dois índices, o fato é que sua natureza é de juros e não de correção monetária.
Os juros são uma sanção, em decorrência da mora, enquanto a correção monetária apenas repõe o valor de mercado do crédito trabalhista. São índices que servem a propósitos distintos e não se confundem. Apesar disso, o STF optou por fazer incidir de forma exclusiva, a partir da distribuição da ação, a Taxa Selic, que à época da decisão estava abaixo de 2% ao ano.
Essa decisão teve um impacto concreto na fruição dos direitos humanos de milhões de trabalhadoras e de trabalhadores, que viram seu crédito trabalhista, de natureza alimentar, corroer no tempo.
Esse foi o caso da vítima representada pelo escritório LBS Advogadas e Advogados perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. A aplicação da decisão do STF ao caso concreto, de forma retroativa, desidratou seu crédito trabalhista em pelo menos metade do valor a que teria direito antes da decisão.
O direito à correção monetária, em índice que reponha a inflação do período, é fundamental para garantir o poder de compra do crédito trabalhista e sua exclusão implica em violação direta ao direito de propriedade, protegido na forma do Artigo 21, da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH).
Esse tema já foi objeto de análise na Corte Europeia de Direitos Humanos, no caso Solodyuk v. Rússia (2005), que reconheceu a violação ao direito de propriedade em decorrência do ônus individual excessivo imposto pelos efeitos da inflação.
A supressão do direito à correção monetária, no caso concreto, também impactou o direito ao salário, protegido na forma do Artigo 26, da CADH. De fato, as verbas salariais deferidas à vítima tiveram uma corrosão de cerca de 95%, se considerada a inflação do período da distribuição da ação até março de 2024.
A denúncia oferecida, embora restrita a um caso individual, pode ter implicações significativas para todos os credores trabalhistas, na medida em que, caso seja admitida a demanda e deferidos os pedidos no mérito, o Brasil poderá ser obrigado a retomar a aplicação da correção monetária dos créditos trabalhistas, em índice que reponha a inflação, sem prejuízo dos juros de mora de 1% ao mês, na forma da legislação nacional.
A decisão do STF na ADC 58, porém, tem um contexto mais amplo. Nesse sentido, a tese Justiça Política do Capital: a desconstrução do Direito do Trabalho por meio de Decisões Judiciais, de Grijalbo Fernandes Coutinho, faz uma importante análise do papel que o STF vem cumprindo com relação ao Direito do Trabalho.
Segundo o autor, a inversão dos princípios constitucionais do Direito do Trabalho e o reconhecimento de direitos fundamentais ao capital em detrimento dos direitos das pessoas trabalhadoras fez com que o STF proferisse diversas decisões regressivas do ponto de vista da proteção social, a exemplo da validação da terceirização irrestrita, do “negociado sobre o legislado”, da restrição da prescrição do FGTS, de trinta para cinco anos e da retirada da competência da Justiça do Trabalho em diversos casos de relações de trabalho.
A realidade da pesquisa citada é reforçada com o julgamento da ADC 58, que retirou o direito de milhões de pessoas trabalhadoras à correção monetária de seu crédito, além de substituir a incidência dos juros de mora de 1% ao mês pela Taxa Selic.
Diante desse cenário, é possível concluir que o caso hoje levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos tem um significado que transcende o direito individual e pode ser fundamental para reorientar a lógica de atuação do Estado brasileiro no campo da proteção dos direitos trabalhistas, em particular garantindo aos credores trabalhistas seu direito à correção monetária, sem prejuízo da incidência dos juros moratórios.
Brasília, 27 de março de 2024.
Felipe Vasconcellos
Sócio da LBS Advogados
E-mail: felipe.vasconcellos@lbs.adv.br