A Interferência da Prevalência do Negociado sobre o Legislado – A Banalização do Registro da Jornada de Trabalho

A legislação trabalhista foi se construindo ao longo dos tempos calcada na luta dos trabalhadores por melhores condições de trabalho e proteções, na busca de se manter o mínimo de dignidade ao trabalhador para que a relação empregatícia não fosse demasiadamente desproporcional, rompendo, a cada passo, com a prática escravocrata que sempre desconsiderou a dignidade humana quando o assunto era servidão.

Dentro deste nicho de direitos e proteções, há um pilar essencial de se manter que é o da saúde e da segurança no trabalho, proteção esta que se revela presente nas mais variadas situações, desde um posto de trabalho (in) salubre, agentes de contato, proteção da integridade física, e até mesmo o tempo dedicado na realização deste trabalho.

Em relação ao tempo, a jornada de trabalho do empregado é um dos maiores fatores (se não o maior) capaz de interferir direta e indiretamente na vida do empregado, tanto no próprio cotidiano do serviço em si, como na vida social e pessoal, tendo em vista que o trabalho também se constitui em uma realização pessoal (ou simplesmente uma necessidade) e requer dedicação. Por conta disso, o empregado empenha um esforço que pode chegar a ser sem limite, levando em consideração a necessidade de se destacar nas suas atividades no mercado competitivo, bem como o interesse do capital de gerar lucros e resultados.

Evoluindo esta questão, há que se impor limite nessa via de mão dupla entre quem detém os meios de produção e visa exclusivamente o lucro e aquele que precisa do posto de trabalho para retirar seus proventos e não pode se negar a fazer parte deste turbilhão, pois que a única fonte de subsistência é a própria força de trabalho. Sendo a força de trabalho um produto não quantificado e não provisionado, o sistema impõe sua atividade na produção até a exaustão, prejudicando notadamente a saúde e colocando em risco a vida e a dignidade do empregado.

Por esta razão, a legislação trabalhista arduamente conquistada foi se aperfeiçoando e enrijecendo com o passar do tempo, dispondo de normas que limitem, freiem e até proíbam este tipo de apropriação da força de trabalho sem a observação das condições de saúde e segurança, bem como a devida contraprestação. Como toda disposição legal que é impositiva e proibicionista, o empregador que visa o lucro acima de qualquer garantia de direitos, buscou se valer de manobras que o isente de incorrer nessas disposições. Uma das mais típicas delas é a violação dos controles de jornada, posto que o tempo de disposição do empregado ao empregador é a disposição que, se violada, mais abrange os direitos trabalhistas e principalmente de remuneração do empregado. Assim, a anotação desta jornada, se fraudada, estará a suprimir muitos direitos e causar sérios danos ao trabalhador.

Dada à importância desta proteção, o Ministério do Trabalho, por meio da Portaria nº 373, de 25/02/2011, em seu artigo 4º¹, tornou obrigatória a utilização do Registrador Eletrônico de Ponto – REP (previsto no art. 31 da Portaria nº 1.510, de 21 de agosto de 2009, com vigência em 01/09/2011), visando coibir as práticas de ausência de registro, marcações apócrifas, lançamento de jornada britânica e qualquer outro tipo de lançamento que cause dúvidas se aquele controle corresponde à efetiva jornada de trabalho realizada. Na prática, a Justiça do Trabalho prima muito por esta fidedignidade, tamanha é a violação praticada.

Neste passo, o interesse do atual governo, que, por meio de um golpe de Estado jurídico-parlamentar, tomou o Poder Executivo de um governo eleito diretamente que tinha claras intenções em ampliar os direitos já conquistados em busca de fortalecimento da classe trabalhadora, é de implantar políticas e fazer reformas estruturais que notadamente beneficiam a classe dominante e detentora dos meios de produção.

Uma dessas reformas estruturais é o PL nº 6.787/2016, que altera a CLT (Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943) e a Lei nº 6.019, de 3 de janeiro de 1974². Esta reforma, em seu artigo 611- A, inciso XIII, atribui à convenção ou acordo coletivo de trabalho força de lei, quando dispuser sobre jornada de trabalho.

Esta prevalência, em linhas gerais, ao equiparar a convenção coletiva com o ordenamento jurídico trabalhista, afasta a obrigatoriedade do cumprimento da legislação vigente, bem como retira a principal característica da luta sindical na negociação coletiva, que é a de ampliar direitos legalmente garantidos. A grosso modo, a negociação coletiva que tem o seu início no teto da previsão legal não pode negociar cláusulas que são menos benéficas que a legislação e, se assim o fizer, estaremos diante de uma nulidade, ao passo que, estando equiparação, não haverá a limitação deste início de negociação, o que permite, inclusive, flexibilizar as condições de trabalho para suprimir direitos.

A exemplo do citado, a convenção coletiva, hoje, não pode prever o pagamento de horas extras com adicional de 40%, uma vez que a determinação do artigo 7, XVI, da CF/88 estabelece o adicional mínimo legal de 50%. Assim, a convenção coletiva só pode prever cláusulas que ampliem a disposição legal, como, por exemplo, a previsão de pagamento de horas extras com o adicional de 60%.

Ainda, a possibilidade contida no PL nº 6.787/16 contraria o disposto no artigo 74, 2º da CLT, bem como a Súmula nº 338 do Tribunal Superior do Trabalho, que reconhece a obrigatoriedade no registro de jornada dos empregados.

Grande crítica ainda ao item XIII do artigo 611-A do referido Projeto de Lei, por não conter qualquer regulamentação dos critérios balizadores dos limites de negociação entre as partes (empregado, empregador e entidade sindical), eis que a redação da forma que se encontra admite inclusive a não anotação ou até mesmo a anotação do controle de jornada que claramente não reflete a realidade, a exemplo dos cartões de ponto britânicos, sendo que o assunto já foi inclusive pacificado pelo Tribunal Superior do Trabalho por meio da Súmula 338, III.³

Além, disso a legislação já prevê a flexibilização dos direitos referentes à jornada de trabalho por meio da negociação coletiva, como é o caso da prorrogação de jornada? e do sistema de compensação de horas?. Ou seja, apesar de todo o sistema de proteção da saúde e da segurança do trabalho, ele próprio já prevê a possibilidade de ajuste, em situações eventuais e não habituais, desde o elastecimento e a alteração de jornada, permitindo que eventualmente se trabalhe duas horas a mais além da jornada contratual, ou que se compensem horas trabalhadas com horas não trabalhadas.

Dito isso, o que se nota é a real intenção de anulação desse sistema de controle, tendo em vista que a anotação da efetiva jornada garante os direitos trabalhistas, como: jornada contratual de 8 horas ou outra que já tenha sido negociada por meio de acordo ou convenção coletiva, horário de intervalos para descanso e alimentação, intervalo entre as jornadas de trabalho (de um dia para o outro), horas de deslocamento ao trabalho quando presentes os requisitos, bem como que o trabalho excesso e sem controle pode vir a causar sérios problemas de saúde (má alimentação, poucas horas de sono) que podem vir a ocasionar um aumento alarmante de doenças ocupacionais e acidentes de trabalho, já que os limites de proteção da dignidade humana não mais seguirão as regras legais, mas aquelas ajustadas entre empregador e empregado.

Quando o dono do meio de produção puder determinar este método de anotação, ou até mesmo quando ele será anotado e em que situações haverá a necessidade de anotação, o trabalhador perderá a proteção legal de limite de exploração da sua forma de trabalho, bem como todos os direitos duramente conquistados ao longo do tempo no que se refere à proteção à saúde e à remuneração por este labor que venha a exceder o máximo legal permitido.

A classe trabalhadora não dispõe das mesmas condições de negociação que a classe dominante. Sendo estes interesses notoriamente contrários, esta proposta de reforma estrutural nas práticas cotidianas mais importantes nos ambientes de trabalho se traduz em verdadeiro desmonte dos direitos trabalhistas e a garantia dos interesses do empresariado, prevalecendo, mais uma vez, o capital sobre a condição humana. 

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¹MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO – PORTARIA Nº 373, DE 25/02/2011
D.O.U.: 28.02.2011
Dispõe sobre a possibilidade de adoção pelos empregadores de sistemas alternativos de controle de jornada de trabalho e revoga a Portaria nº 1.120, de 8 de novembro de 1995.
O MINISTRO DE ESTADO DO TRABALHO E EMPREGO, no uso das atribuições que lhe conferem o inciso II do parágrafo único do art. 87 da Constituição Federal e os arts. 74, § 2º, e 913 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943; resolve:
Art. 1º – Os empregadores poderão adotar sistemas alternativos de controle da jornada de trabalho, desde que autorizados por Convenção ou Acordo Coletivo de Trabalho.
1º – O uso da faculdade prevista no caput implica a presunção de cumprimento integral pelo empregado da jornada de trabalho contratual, convencionada ou acordada vigente no estabelecimento.
2º – Deverá ser disponibilizada ao empregado, até o momento do pagamento da remuneração referente ao período em que está sendo aferida a freqüência, a informação sobre qualquer ocorrência que ocasione alteração de sua remuneração em virtude da adoção de sistema alternativo.
Art. 2º – Os empregadores poderão adotar sistemas alternativos eletrônicos de controle de jornada de trabalho, mediante autorização em Acordo Coletivo de Trabalho.
Art. 3º – Os sistemas alternativos eletrônicos não devem admitir:
I – restrições à marcação do ponto;
II – marcação automática do ponto;
III – exigência de autorização prévia para marcação de sobrejornada; e
IV – a alteração ou eliminação dos dados registrados pelo empregado.
1º – Para fins de fiscalização, os sistemas alternativos eletrônicos deverão:
I – estar disponíveis no local de trabalho;
II – permitir a identificação de empregador e empregado; e
III – possibilitar, através da central de dados, a extração eletrônica e impressa do registro fiel das marcações realizadas pelo empregado.
Art. 3º – Fica constituído Grupo de Trabalho com a finalidade de elaborar estudos com vistas à revisão e ao aperfeiçoamento do Sistema de Registro Eletrônico de Ponto – Srep.
Art. 4º – Em virtude do disposto nesta Portaria, o início da utilização obrigatória do Registrador Eletrônico de Ponto – REP, previsto no art. 31 da Portaria nº 1.510, de 21 de agosto de 2009, será no dia 1º de setembro de 2011.
Art. 5º – Revoga-se a Portaria nº 1.120, de 8 de novembro de 1995.
Art. 6º – Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação.
CARLOS ROBERTO LUPI
²Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2122076
³Art. 74 – O horário do trabalho constará de quadro, organizado conforme modelo expedido pelo Ministro do Trabalho, Industria e Comercio, e afixado em lugar bem visível. Esse quadro será discriminativo no caso de não ser o horário único para todos os empregados de uma mesma seção ou turma.
1º – O horário de trabalho será anotado em registro de empregados com a indicação de acordos ou contratos coletivos porventura celebrados.
2º Para os estabelecimentos de mais de dez empregados, será obrigatória a anotação da hora de entrada e saída, em registos mecânicos, ou não, devendo ser assinalados os intervalos para repouso.
SUM-338 JORNADA DE TRABALHO. REGISTRO. ÔNUS DA PROVA (incorporadas as Orientações Jurisprudenciais nºs 234 e 306 da SBDI-1) – Res. 129/2005, DJ 20, 22 e 25.04.2005
I – É ônus do empregador que conta com mais de 10 (dez) empregados o registro da jornada de trabalho na forma do art. 74, 2º, da CLT. A não-apresentação injustificada dos controles de frequência gera presunção relativa de veracidade da jornada de trabalho, a qual pode ser elidida por prova em contrário. (ex-Súmula nº 338 – alterada pela Res. 121/2003, DJ 21.11.2003)
II – A presunção de veracidade da jornada de trabalho, ainda que prevista em instrumento normativo, pode ser elidida por prova em contrário. (ex-OJ nº 234 da SBDI-1 – inserida em 20.06.2001)
III – Os cartões de ponto que demonstram horários de entrada e saída uniformes são inválidos como meio de prova, invertendo-se o ônus da prova, relativo às horas extras, que passa a ser do empregador, prevalecendo a jornada da inicial se dele não se desincumbir. (ex-OJ nº 306 da SBDI-1- DJ 11.08.2003)
2º Para os estabelecimentos de mais de dez trabalhadores será obrigatória a anotação da hora de entrada e de saída, em registro manual, mecânico ou eletrônico, conforme instruções a serem expedidas pelo Ministério do Trabalho, devendo haver pré-assinalação do período de repouso. (Redação dada pela Medida provisória nº 89, de 1989)
2º – Para os estabelecimentos de mais de dez trabalhadores será obrigatória a anotação da hora de entrada e de saída, em registro manual, mecânico ou eletrônico, conforme instruções a serem expedidas pelo Ministério do Trabalho, devendo haver pré-assinalação do período de repouso.
?Prorrogação de jornada: é cabível para todo empregado, como regra geral; todavia, há exceções que devem ser respeitadas; o fundamento legal é a CLT, art. 59, que declara que a duração normal do trabalho poderá ser acrescida de horas suplementares, em número não excedente de duas, mediante acordo escrito entre empregador e empregado, ou mediante convenção coletiva de trabalho.
?Sistema de Compensação de Horas: consiste na distribuição das horas de uma jornada por outra ou outras jornadas diárias do quadrimestre (Lei 9601/98); com o sistema de compensação, o empregado fará até 2 horas prorrogadas por dia. (art. 59, § 2º) A compensação de horas prevista na CLT, significa que durante o quadrimestre que servirá de parâmetro as horas além das normais, serão remuneradas sem adicional de horas extras; completados os 120 dias o empregador terá que fazer o levantamento do número de horas nas quais o empregado trabalhou durante esse período; se esse número não ultrapassar o limite normal do quadrimestre, não haverá nenhum pagamento adicional a ser efetuado; no entanto, se ultrapassar, o empregador terá que pagar as horas excedentes com adicional; nesse caso, como haverá reflexos sobre pagamentos já efetuados nos meses anteriores do quadrimestre, a empresa estará obrigada a, nessa ocasião, completar as diferenças.

Aline Carla Lopes Belloti

Sócia da LBS Advogados
E-mail: aline.belloti@lbs.adv.br

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