A Organização Internacional do Trabalho, no ano de 2019, pela primeira vez, reconheceu a todos os trabalhadores e trabalhadoras o direito a um ambiente de trabalho livre de violência e assédio, adotando assim a Convenção nº 190.[1]
A Convenção define “violência e assédio” no mundo do trabalho como o conjunto de comportamentos e práticas inaceitáveis, ou ameaças, ocorridas uma única vez ou de forma repetitiva quem visem, causem ou sejam susceptíveis de causar dano físico, psicológico, sexual ou econômico, incluída a violência e o assédio com base no gênero.
O preâmbulo da norma relata o histórico de lutas e afirmações em diversas normas, convenções e instrumentos internacionais que ao longo do último século já asseveram o direito dos trabalhadores e trabalhadoras a um ambiente de trabalho livre de discriminações seja por raça, crença ou sexo, sendo a violência e o assédio ameaças à igualdade de oportunidade para as mulheres, prática incompatível com o trabalho decente.
Apensar de o Brasil ainda não ter ratificado a Convenção nº 190 da OIT, em setembro de 2022 foi publicada a Lei nº 14.457[2] alterando a CLT em alguns de seus artigos, reconhecendo a maior vulnerabilidade da mulher no mundo do trabalho.
A referida lei foi denominada “Emprega + Mulher” e a leitura de seus dispositivos nos mostra uma legislação que não obriga as empresas, sendo na verdade uma carta de boas intenções para que os empregadores, de acordo com o seu poder diretivo, decidam implementar ou não a política de inserção e de manutenção das mulheres no mercado de trabalho.
A exceção é quanto à obrigatoriedade do combate ao assédio sexual e outras formas de violência no ambiente do trabalho (Capítulo VII, art. 23). Nesse ponto, a Lei nº 14.457/22, alinhada aos preceitos da Convenção nº 190 da OIT, reconhece a importância de uma cultura de trabalho com base no respeito mútuo e na dignidade dos trabalhadores e das trabalhadoras, impondo ao empregador a constituição da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes e Assédio – CIPA, que deverá implementar medidas de prevenção a violência e ao assédio no ambiente de trabalho.
Dentre as medidas que deverão ser implementadas em conjunto com a CIPA até 20 de março de 2023, exige-se:
I – inclusão de regras de conduta a respeito do assédio sexual e de outras formas de violência nas normas internas da empresa, com ampla divulgação do seu conteúdo aos empregados e às empregadas;
II – fixação de procedimentos para recebimento e acompanhamento de denúncias, para apuração dos fatos e, quando for o caso, para aplicação de sanções administrativas aos responsáveis diretos e indiretos pelos atos de assédio sexual e de violência, garantido o anonimato da pessoa denunciante, sem prejuízo dos procedimentos jurídicos cabíveis;
III – inclusão de temas referentes à prevenção e ao combate ao assédio sexual e a outras formas de violência nas atividades e nas práticas da CIPA; e
IV – realização, no mínimo a cada 12 (doze) meses, de ações de capacitação, de orientação e de sensibilização dos empregados e das empregadas de todos os níveis hierárquicos da empresa sobre temas relacionados à violência, ao assédio, à igualdade e à diversidade no âmbito do trabalho, em formatos acessíveis, apropriados e que apresentem máxima efetividade de tais ações.
A Lei ainda enfatiza que as medidas administrativas adotadas pela empresa não substituem o processo penal correspondente, caso a conduta denunciada se encaixe na tipificação legal de assédio sexual, ou em outros crimes de violência.
Assédio sexual e outras formas de violência
Assédio sexual é todo comportamento indesejado de caráter sexual, sob forma verbal, não verbal ou física, com o objetivo ou efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador.
Pode ocorrer entre chefia e subordinados, entre colegas do mesmo nível hierárquico, entre subordinados e chefia e até mesmo pode ser por pessoas não vinculadas à relação de emprego, como clientes e prestadores de serviço.
No entanto, o crime de assédio sexual ocorre somente quando praticado pelo superior hierárquico com o objetivo de obter vantagem ou favorecimento sexual, conforme art. 216-A do Código Penal, com pena de reclusão de seis meses a dois anos e multa.
A expressão “outras formas de violência no ambiente de trabalho” deve ser entendida como qualquer outro ato ou ameaça que discrimine, deprecie ou viole a dignidade dos trabalhadores e em especial das trabalhadoras vítimas em maior número de atos de violência e assédio no ambiente de trabalho.
Como exemplo de comportamentos, práticas ou ameaças inaceitáveis destacam-se: assédio moral, assédio eleitoral, discriminações pela cor, orientação sexual ou identidade de gênero (LGBTfobia), deficiência (capacitismo), etarismo, depreciação de características físicas.
Cabe frisar que o crime de injúria racial está disposto no capítulo dos crimes contra a honra no Código Penal e caracteriza-se pela ofensa à dignidade de alguém com base em elementos de sua raça, cor, etnia, religião, idade ou deficiência.
Já o crime de racismo está previsto na Lei nº 7.716/89 e caracteriza-se por ofensa à coletividade de pessoas, regulamentando a punição de crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, etnia, religião e procedência nacional, ampliando a proteção legal para os casos de intolerância.
Além disso, a discriminação contra a população LGBTI+ foi equiparada ao crime de racismo pelo STF em 2019, de forma que os atos de discriminação em razão da orientação sexual ou identidade de gênero também podem ser processados criminalmente, visando a efetivação do princípio de proteção à dignidade humana previsto na Constituição federal.
E quanto a violência doméstica?
A Lei nº 14.457/22 limita as medidas de atuação do empregador quanto ao ambiente do trabalho, no entanto, vale destacar que a Convenção nº 190 da OIT considera a violência doméstica fator de risco para a saúde e segurança dos trabalhadores e das trabalhadoras. A Convenção chama a atenção de governos e atores sociais, em especial as organizações de empregadores e trabalhadores, para que reconheçam o tema e tomem medidas de enfrentamento quanto à violência doméstica.
Temos alguns exemplos bem-sucedidos, como o da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro – Contraf. Com o projeto intitulado “Basta! Não irão nos calar”, a entidade tem apoiado a implementação de canais de denúncias com serviços e atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica, nas federações e nos sindicatos filiados à Confederação.[3]
Além disso, a categoria bancária conseguiu incluir em sua Convenção Coletiva de Trabalho cláusula garantindo a empregadas vítimas de violência doméstica a possibilidade de alteração de regime de trabalho, além da obrigatoriedade de um canal de denúncias para casos de assédio sexual, cláusulas 76 e 82 respectivamente.[4]
Alterações nas Normas Regulamentadoras
Por fim, convém citar as alterações nas Normas Regulamentadoras como consequência da publicação da Lei nº 14.457/22, que alterar a nomenclatura da CIPA, incluindo a prevenção para o assédio e outras violências. Assim, todas as NRs tiveram que ser atualizadas, ao todo 18 Normas, e em especial a Norma Regulamentadora nº 5 – CIPA, que passou a repercutir todas as medidas de prevenção quanto ao assédio e violência no ambiente de trabalho, conforme Portaria nº 4.219, de 20/12/22[5].
Fica claro que ainda há muito para avançarmos quanto ao reconhecimento da violência e da ameaça no ambiente de trabalho, sendo que a ratificação da Convenção nº 190 pelo Brasil é medida de urgência para que de fato possamos avançar para um ambiente de trabalho sadio, livre de violências e assédio, sendo a segurança e saúde do trabalhador princípios fundamentais para a promoção do trabalho digno.
Políticas públicas de conscientização e fortalecimento de ações para mulheres, pessoas negras e LGBTQIA+ também são essenciais e devem ser exigidas do governo.
Brasília e Campinas, 29 de dezembro de 2022.
REFERÊNCIAS
BARRETTO, Luciana L. B. CARNEIRO, Ricardo. MEGALE, Antonio Fernando. Programa Emprega + Mulheres é sancionado. Brasília. 28 de set. 2022. Disponível em:
https://lbs.adv.br/artigo/programa-emprega-mulheres-e-sancionado/ Acesso em: 28.12.2022.
BARRETTO, Luciana L. B. MEGALE, Antonio Fernando. SOUZA, Ana Luyza Caires. Saúde e segurança no trabalho como Direito e Princípio Fundamentais da OIT. Brasília. 21 de jun. de 2022. Disponível em: https://lbs.adv.br/artigo/saude-e-seguranca-no-trabalho-como-direito-e-principio-fundamentais-da-oit/ Acesso em: 28.12.2022.
Cartilha enfrentamento ao assédio moral, assédio sexual e discriminação no trabalho bancário. Brasília, 2002. Disponível em: https://www.lbs.adv.br/pdf/noticias/f94c4eaff9e558e3d43c493d0702f2b28d211f46.pdf Acesso em 27.12.2022
[1] Organização Internacional do Trabalho. Convenção 190 – Violência e Assédio. 2019. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—europe/—ro-geneva/—ilo-lisbon/documents/genericdocument/wcms_729459.pdf. Acesso em 27/12/22.
[2] Presidência da República. Lei nº 14.457, de 21 de setembro de 2022. Brasília, 2022. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.457-de-21-de-setembro-de-2022-431257298 . Acesso em 27/12/22.
[3] Projeto Basta! Não irão nos calar. Confederação dos Trabalhadores do Ramo Financeiro – Contraf/CUT.<https://contrafcut.com.br/noticias/contraf-cut-lanca-projeto-basta-contra-a-violencia-domestica/
[4] Convenção Coletiva de Trabalho da categoria bancária, 2022. https://contrafcut.com.br/wp-content/uploads/2022/09/cct-2022-2024.pdf
[5] Ministério do Trabalho e Previdência. Portaria 4219 de 20 de dezembro de 2022. Disponível em: https://in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-mtp-n-4.219-de-20-de-dezembro-de-2022-452780351. Acesso em 27/12/22.
Luciana Barretto
Sócia da LBS Advogados
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Antonio Fernando Megale
Sócio da LBS Advogados
E-mail: antonio.megale@lbs.adv.br