A história do carnaval denota ritualismo. Em sua origem, relacionada à cíclica da natureza, agradecimento às forças universais que traziam a luz e a fartura da primavera[1]. Noutras épocas, destinado a marcar o início do período de restrição do consumo de carne e bebidas, por isso, abundante. No catolicismo, festa que antecede à restrição, por isso, libertária.
No Brasil, as escolas de samba viraram lugar de denúncia e luta. Quando, eu não me recordo, desde que nasci é assim. Se a sociedade tenta calar as comunidades, na avenida seus gritos ecoam. Com tambor e axé. Força e beleza. Hinos.
É carnavalesca toda a forma artística que usa da festa e da alegria incontida para falar do cotidiano em todas as suas formas. Profano? Só porque emanado do ser humano e das coisas e dos fatos mundanos que o permeiam. As pessoas irradiam no carnaval sua carga cultural em sua totalidade.
Em 1989, a escola de samba Beija-Flor, às vésperas do fim formal do período ditatorial, escancarava a censura no carro abre-alas. Olhai por nós, ainda que proibido[2]. O Cristo vestido aos farrapos causou incômodo na Arquidiocese do Rio de Janeiro. Cristo não podia ter sido pobre? Foi censurado tal qual fora a peça O Evangelho segundo Jesus Cristo, rainha do céu. Jesus não poderia ser mulher? Quem dirá trans!
E por que não se pode falar de um Cristo pobre e retinto? A verdade vos fará livres, anunciou a Mangueira. Pronto, o tema enredo deste ano já virou alvo de abaixo-assinado de instituto católico, que condena a escola de blasfêmia. Algumas vertentes da igreja evangélica alegam que a Estação Primeira de Mangueira quer incutir na sociedade a teoria da Teologia da Libertação[3], acusada de pregar a desconstrução do cristianismo. Crucificada como Paulo Freire e sua pedagogia do oprimido, ambos acusados de comunistas.
Questiono: só se pode retratar o credo cristão na forma determinada pela Igreja durante a Idade Média? Não há espaço para retratar o credo conforme as experiências sociais de cada um? À imagem e semelhança do que é a criatura humana, todas elas? Olho por olho, dente por dente, espalha, a Lei da Babilônia é diferente.[4]
O incômodo é o elemento sagrado das artes porque é a chave para o questionamento e para a reflexão. Oxalá, evolução.
E então, o que define que carnaval é possível e qual não é? Digo: se busca silenciar o carnaval que escracha as desigualdades, que escancara as injustiças sociais, que dá voz aos anseios populares, que pede dignidade a quem se pretende invisibilizar, que propõe refletir a partir de novas perspectivas. O que indaga o status quo é certamente o alvo de silenciamento e censura.
É lícito usar da fé para questionar injustiças sociais e o estado das coisas, e que assim seja.
Há de se gritar para perguntar: quem matou Marielle? Quem mata todos os dias nas comunidades? Ainda que a pergunta esteja implícita, vinda de convite a ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês[5]. Transmutação em arte daquilo que diariamente nos causa inconformismo, necessário desfilar, desafiar.
É de carnaval o retrato social denunciado pelo manguebeat e pelo maracatu atômico que se propõe desorganizar para se organizar[6]. É de carnaval o que resiste e o que não se irresigna. É de carnaval o que denuncia o golpe nas avenidas[7] e nos blocos da madrugada em São Paulo[8]. É de carnaval protestar, com a integralidade da dimensão do ser humano[9], pela sua fé, na vida, nos santos, nos deuses, no ser humano e em um futuro mais digno. É de carnaval a liberdade para ser, sentir e mostrar. Com ferocidade e ginga.
É de carnaval o que irradia a luz do saber popular e da vivência das ruas na cara dos caretas.[10]
Minha carne é de carnaval.
Meu coração é igual. [11]
REFERÊNCIAS
[1] Na Antiguidade, os povos consideravam o inverno como um reino de espíritos que precisavam ser expulsos para que o verão voltasse. O carnaval pode assim ser considerado como um rito de passagem da escuridão para a luz, do inverno ao verão: uma celebração de fertilidade, a primeira festa de primavera do ano novo. Wikipedia. Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Carnaval> Acesso em 16/02/2020.
[2] Dizeres em faixa do carro abre-alas do desfile intitulado Ratos e Urubus, larguem minha fantasia, enredo de Joãosinho Trinta, Beija-Flor de Nilópolis, 1989, Rio de Janeiro.
[3] Teologia da Libertação, segundo o Wikipedia, é uma corrente teológica cristã nascida na América Latina, depois do Concílio Vaticano II e da Conferência de Medellín, que parte da premissa de que o Evangelho exige a opção preferencial pelos pobres e especifica que a teologia, para concretar essa opção, deve usar também as ciências humanas e sociais.
[4] Referência à música Duas Cidades, Baiana System, 2016.
[5] Referência ao samba-enredo História para mimar gente grande, Estação Primeira de Mangueira, 2019.
[6] Referência à música Da Lama ao Caos, Chico Science e Nação Zumbi, 1994.
[7] Referência ao samba-enredo O Salvador da Pátria, Paraíso de Tuiuti, 2019.
[8] Referência ao Arrastão dos Blocos pela Democracia, concentração no Coreto da Praça da República, 2017. Com o enredo “Arrastão dos Blocos, veio pra somar, folia da democracia, golpe nunca mais”.
[9] Dimensão social, política, cultural, religiosa, sexual.
[10] Referência à música Vaca Profana, de Gal Costa, 1984.
[11] Referência à música Swing de Campo Grande, Novos Baianos, 1972.