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O direito à existência – Barreiras no sistema de saúde quanto ao procedimento transexualizador

“Você nasce e morre dentro de caixas. Caixa da família, da escola, do casamento e depois vai para o caixão. Ponha o pé para fora disso e você já é estigmatizado. Tem que ter muita estrutura para segurar a peteca da marginalidade”. É assim que João W. Nery relata a batalha de assumir-se transexual e a luta pelo reconhecimento do direito de viver de acordo com a identidade de gênero um contexto que aqueles que fogem à norma “meninas vestem rosa, meninos vestem azul” são empurrados para a marginalidade.

João W. Nery é um dos grandes símbolos na luta pelo reconhecimento dos direitos das pessoas transexuais no Brasil, sendo o primeiro caso transmasculino (pessoa designada mulher ao nascer, mas que se reconhece como homem) a ser registrado no país. Em 1977, com o intuito de conformar sua expressão corporal à sua identidade de gênero, submeteu-se à retirada das mamas, dos ovários e do útero. Todo o procedimento foi feito de forma clandestina, visto que somente 20 anos mais tarde esse tipo de cirurgia seria legalizado no Brasil.

O médico que realizou as cirurgias, Roberto Farina, era conhecido por realizar os procedimentos cirúrgicos do processo transexualizador, antes mesmo da popularização do termo ou do reconhecimento legal por parte do Estado.

Em 1971, Farina realizou o primeiro caso registrado de cirurgia de redesignação sexual em uma mulher trans no país, tendo sido posteriormente processado por “lesão corporal” em razão disso. Embora a “vítima”, Waldirene Nogueira, demonstrasse estar satisfeita com o resultado, declarando “senti-me tão aliviada que me pareceu ter criado asas novas para a vida”, o processo prosseguiu e resultou em condenação, sendo revisto somente em segunda instância, após grande mobilização em favor do médico.

Embora João e Waldirene tenham realizado os procedimentos cirúrgicos que fazem parte do hoje chamado processo transexualizador na época da Ditadura Militar e a legislação e protocolos tenham evoluído muito desde então, a marginalização, o estigma e as dificuldades de acesso persistem, colocando a vida de pessoas transexuais em risco, ao se submeterem a procedimentos clandestinos, sem garantia de qualidade ou segurança.

Em fevereiro deste ano, ganhou repercussão o caso de Lorena Muniz, uma jovem travesti pernambucana que morreu na mesa de operação de uma clínica clandestina em São Paulo, após ser abandonada sedada quando começou um incêndio no local. O caso é emblemático por nos lembrar da forma como os corpos trans são tratados de forma abjeta. Infelizmente, embora tenha ganhado os noticiários, o caso de Lorena não é isolado. Diariamente corpos trans são descartados no país que mais mata transexuais no mundo: em clínicas clandestinas, em decorrência de negligência médica, na fila do SUS e pela negativa de acesso ao mercado formal de trabalho, empurrando-os para a prostituição.

Apesar da existência de uma Política Nacional de Saúde Integral LGBTI do Ministério da Saúde, por meio da Portaria nº 2.803/2013, que garante acesso aos procedimentos cirúrgicos do processo transexualizador no SUS, a condução dessas políticas na prática enfrenta inúmeras dificuldades operacionais, desde a ausência de profissionais para atuarem à ausência de recursos, de maneira que a espera por tais procedimentos se torna extremamente demorada.

Para se ter ideia do esvaziamento dessas medidas, em 2020, o número de atendimentos do processo transexualizador pelo SUS caiu drasticamente. As cirurgias diminuíram em 70% e a terapia hormonal em 6,5% em comparação com o ano anterior, segundo dados do DataSus até novembro de 2020. A Defensoria Pública de São Paulo alerta que uma pessoa pode ficar até 18 anos em uma fila de espera para a realização da cirurgia de transexualização.

Uma vez que essas cirurgias são consideradas como eletivas, as intervenções médicas que não representam urgência para a sobrevivência física, durante a pandemia, procedimentos do tipo, de todas as vertentes médicas, foram suspensos ou postergados, em razão da ocupação de leitos e direcionamento de insumos para o tratamento da Covid-19.

É esse o contexto que empurra as pessoas trans a buscarem clínicas clandestinas no afã de conseguirem conformar sua expressão corporal à sua identidade de gênero, uma vez que, não obstante a garantia de acesso ao processo transexualizador na rede do Sistema Único de Saúde, a regulamentação e implementação nos Estados é incipiente.

A Portaria nº 2.803/2013, considerando que o acesso à saúde integral é uma garantia fundamental da população trans, redefiniu e ampliou as diretrizes de regularização do Processo Transexualizador no SUS, assegurando a integralidade da atenção a transexuais e travestis, não restringindo ou centralizando a meta terapêutica às cirurgias de transgenitalização e demais intervenções somáticas, além de dispor sobre a necessidade de acompanhamento por equipe interdisciplinar e multiprofissional.

A Política Nacional de Saúde Integral LGBT é o reconhecimento e realização dos direitos à saúde, à autonomia corporal, à autodeterminação da identidade sexual, à diversidade humana e à dignidade das pessoas LGBTs. A centralidade da normativa na garantia dos direitos de pessoas trans se dá não só por reconhecer o direito ao acesso e tratamento no Sistema Único de Saúde para a realização de procedimentos estéticos de adequação corporal e tratamento hormonal, mas também por prever o acompanhamento multidisciplinar, com atendimento por psicólogas(os) e assistentes sociais, considerando a situação de vulnerabilidade que se encontra a população.

O acompanhamento multidisciplinar é essencial no reconhecimento do processo de cuidado e atenção à população trans, uma vez os reflexos na qualidade de vida e garantia de dignidade desta população não se findam com o acesso aos procedimentos hormonais e cirúrgicos, sendo certo que a discriminação social persistente é fator de adoecimento psíquico, que deve ser igualmente considerado quando falamos de saúde integral. 

Torna-se imprescindível o respaldo jurídico-social às garantias das minorias, quaisquer que sejam elas, sobretudo no que tange ao direito da personalidade. Afinal, cada indivíduo possui como garantia os direitos ao nome, à honra e à integridade, que juntos convergem na efetiva jurisdição e observância dos princípios gerais da pessoa humana, dos bens jurídicos fundamentais de uma sociedade, dos direitos humanos e do real Estado Democrático de Direito.

Assim, progredir e inovar nos direitos dos transexuais são necessidades urgentes. Nesse contexto, as diferenças, os preconceitos e o extremismo não são mais “locais de fala” e precisam ser extirpados de uma sociedade contemporânea. Estamos tratando de direitos humanos e viver e conviver com uma sociedade plural é condição inegável de dignidade, pois o indivíduo é o elemento central do Estado Democrático brasileiro.

Brasília, 12 de abril de 2021.

Raquel Jales Bartholo de Oliveira

Advogada da LBS Advogados
E-mail: raquel.bartholo@lbs.adv.br

Andrey Rondon Soares

Advogada da LBS Advogados
E-mail: andrey.soares@lbs.adv.br

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