O trabalho doméstico teve seu surgimento na época em que os senhores do campo contavam com uma equipe de serviçais para servir as necessidades de sua casa e de sua família. Sim, o trabalho doméstico originou-se do trabalho escravo, na era colonial, quando esses serviços eram realizados em troca de subsistência, essencialmente por mulheres e crianças negras. É sabida, também, a condição de exploração sexual a que eram submetidas essas mulheres. Atualmente, muitas destas características ainda se mantêm.
A Central Única dos Trabalhadores produziu um Relatório[1] em 2016 no qual constata que o trabalho doméstico é exercido essencialmente por mulheres, em sua maioria negras, destacando que, apesar das regulamentações da Emenda Constitucional n. 72/2013 e da Lei Complementar nº 150/2015, há ainda muito trabalho informal, especialmente nas relações familiares, onde a mulher assume o papel de cuidadora do lar e da família, sendo um trabalho que essencialmente é atribuído ao gênero feminino e sem remuneração.
No âmbito da família, há também muitos depoimentos que expressam toda essa condição, como exemplo: “Meu marido não se sente responsável pelo trabalho doméstico porque alega que ganha mais do que eu, então eu tenho obrigação de realizar as atividades domésticas”. A questão do gênero também é um aspecto essencial e contributivo para o sistema capitalista, como narra Nalu, uma das autoras: “Pela divisão sexual do trabalho, as mulheres são empurradas a fazer sozinhas todo o trabalho doméstico do cuidado. Isso cria uma desigualdade no uso do tempo e nas tarefas de homens e mulheres”.
Essa cultura e concepção do trabalho doméstico ainda estão presentes na sociedade atual. Embora seja profissão legalmente reconhecida e regulamentada pela Lei Complementar n. 150/2015[2], o trabalho doméstico ainda é visto de forma estigmatizada.
A LC n. 150/2015 regulamentou a profissão doméstica reconhecendo direitos básicos de qualquer trabalhador de outra categoria, tais como registro em carteira, direito aos recolhimentos fiscais e previdenciários, limite de jornada de 8 horas diárias com determinação de registro das horas trabalhadas e direito ao recebimento de horas extras por eventual trabalho excedente, alimentação e transporte. Juridicamente, muitas situações não previstas pela referida lei têm sido decidas por analogia à Consolidação das Leis do Trabalho, que regulamenta o trabalho formal de todas outras categorias de trabalhadores.
Apesar deste avanço significativo para a categoria doméstica, tal normatização não foi suficiente para afastar o estigma social que a profissão ainda carrega. Se, de um lado, a sociedade culturalmente reproduz os sentimentos do período colonial (tratando o trabalho doméstico como “caridade”, “favor”, “oportunidade”), cabe ao Estado, por meio das instituições, aplicar e reconhecer o trabalho doméstico com veemência e com a mesma relevância dada às demais categorias profissionais.
Na prática, diariamente, nós, profissionais do Direito, esbarramos nessas dificuldades de não reconhecimento e relativização do trabalho doméstico.
Recentemente, o INSS – Instituto Nacional do Seguro Social negou um reconhecimento de acidente trabalho à uma empregada doméstica, mesmo com o registro em carteira da atividade profissional. Na ocasião, a empregada acidentou-se no percurso ao trabalho, situação esta já reconhecida como acidente típico de trabalho para as demais categorias. No caso relatado, a empregada doméstica teve um afastamento pelo auxílio B-31 – auxílio-doença, que se trata de um afastamento por qualquer outro motivo de saúde que não guarde relação com o trabalho.
Uma pesquisa realizada na Universidade Federal da Bahia[3] concluiu, em relação ao trabalho doméstico, que “a incidência anual de acidentes de trabalho não fatais são 5,0% maior entre as empregadas em serviços domésticos (7,3%) do que entre as demais trabalhadoras (4,5%), diferença estatisticamente significante (p<0,05). Metade dos acidentes entre empregadas em atividades domésticas causou efeitos, frequentemente não incapacitantes, mas que levaram 38,1% dessas mulheres a faltar ao trabalho”.
No âmbito do Judiciário, os direitos trabalhistas também tem sido prejudicados. Existe um esforço de conduzir o processo ao “não julgamento”. Muito embora a LC n. 150/2015 reconheça, em seu artigo 1º, a relação formal empregatícia e, em seu artigo 12, a obrigatoriedade do registro da jornada, na prática os juízes têm relativizado essas questões, buscando a todo custo induzir essa trabalhadora a aceitar acordos com valores muito abaixo do realmente devido. Os argumentos são os mais diversos, como “o trabalho doméstico é uma relação quase familiar, dado o trabalho em local de foro íntimo do empregador”, “o acordo é a melhor solução para que o empregador não fique com o peso de uma dívida e a senhora não fique sem receber”. Há até argumentos que buscam sensibilizar e coagir, como “seus filhos brincavam juntos, seu filho nem teria acesso a esses brinquedos”, “esse valor de horas extras, não foi pago de outra forma?”, “não lhe ajudou a comprar uma geladeira?”.
Como se vê, esses argumentos por si só afastam a característica de uma relação empregatícia, nem se discutindo as violações e irregularidades trabalhistas, como se o trabalhador devesse aceitar “benesses” em troca de uma remuneração justa.
É preciso romper com essa cultura feudal tanto no âmbito social e pelos poderes do Estado, que é quem tem o dever legal de realizar essa transição do estigma para o direito.
Não se pode admitir a ideia de que o trabalho doméstico registrado é muito custoso e inviável, porque este é um trabalho como outro qualquer, tendo sigo regulamentado à base muita luta da categoria. O trabalhador doméstico deve exigir os seus direitos, buscando assistência nos seus sindicatos, em organização com a classe, recorrendo ao Estado. É essencial o fim dessa cultura escravista e machista que permeia os subempregos, especialmente o emprego doméstico.
REFERÊNCIAS
[1] TEIXEIRA, Marilane; FARIA, Nalu. Disponível em: <https://www.cut.org.br/noticias/desigualdade-no-trabalho-domestico-diminui-com-politica-publica-diz-relatorio-9ea0>. Acesso em 15/07/2019.
[2] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp150.htm>. Acesso em 15/07/2019.
[3] Vilma S. Santana, Vilma, Amorim, Andréa M de, Oliveira, Roberval, Xavier, Shirlei, Iriart, Jorge e Belitardo, Liliane – Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia (UFBA). Salvador, BA, Brasil, 2002. Disponível em <https://www.scielosp.org/article/rsp/2003.v37n1/65-74/>. Acesso em: 08/07/2019.