Os ideólogos são os outros – Ideologia de gênero e educação sexual

“Se a educação não pode tudo, alguma coisa fundamental a educação pode. Se a educação não é a chave das transformações sociais, não é também simplesmente reprodutora da ideologia dominante.”

Inspirado no pensamento de Paulo Freire, o sistema educacional brasileiro é fundado na liberdade de ensinar e no pluralismo de ideias, direcionado à construção de uma sociedade mais livre, justa e solidária.

Nos últimos anos, porém, uma das principais facetas da escalada conservadora tem sido a denominada “pauta dos costumes”, calcada na construção de certo pânico moral da destruição da família tradicional brasileira. O lema “fé, pátria e família”, utilizado por grupos conservadores da sociedade civil e militares em 1964, tem sido resgatado por alguns setores da sociedade, principalmente ligados às igrejas cristãs, como forma de marcar posicionamento contra o avanço do reconhecimento dos direitos das minorias sexuais.

A proposta pedagógica de Paulo Freire, marcada pelo direcionamento à emancipação e liberdade dos grupos oprimidos, passou a ser alvo de ataques daqueles que pretendem a reprodução da ideologia dominante: a família heterossexual, cristã, em que homens e mulheres ocupam papéis desiguais e bem definidos.

A despeito dessa escalada conservadora nos diversos setores da sociedade, a escola tem sido o principal ponto de perseguição, fato demonstrado pelas diversas vezes em que o Supremo Tribunal Federal foi provocado nos últimos anos a se manifestar acerca da constitucionalidade de leis municipais que pretendem proibir que gênero figure como conteúdo curricular nas escolas públicas de educação básica.[1]

As propostas legislativas visam, conforme nomeiam seus defensores, ao combate da “ideologia de gênero” nas escolas. O principal fundamento da inconstitucionalidade das iniciativas municipais é de origem formal: a competência para legislar sobre as diretrizes e bases da educação é exclusiva da União, conforme o artigo 22, XXIV, da Constituição. Entretanto, as reiteradas decisões da Suprema Corte apontam, também, a inconstitucionalidade material dessas propostas, uma vez que não cumprem o dever estatal de promover políticas públicas de inclusão e igualdade, contribuindo para a manutenção da discriminação com base na orientação sexual e identidade de gênero.

Conforme ressaltado no julgamento da ADPF nº 460/PR, o ensino sobre as questões ligadas às questões de gênero e sexualidade são essenciais ao pluralismo democrático e estão ligadas aos compromissos assumidos pelo Brasil na Agenda 2030 da ONU, especialmente nos eixos “Educação de Qualidade”, “Redução das Desigualdades” e “Paz, Justiça e Instituições Eficazes”.

Embora o Poder Judiciário, notadamente no julgamento das referidas ações, venha ressaltando e reafirmando a importância da educação sexual e de gênero como instrumento de garantia e realização dos direitos fundamentais, as iniciativas conservadoras e a “caçada anti-gênero” têm ganhado força e espaço na agenda política.

O pânico moral é incentivado pelas alas conservadoras, dentro do que chamam de combate à “ideologia de gênero”. Exemplo disso foi a campanha contra o caderno “Escola sem Homofobia”, apelidado pejorativamente pelo então candidato à Presidência da República Jair Bolsonaro de “kit gay”, propagando a ideia errônea de que estariam promovendo aulas de sexo e promiscuidade às crianças.

O pânico e falta de critérios sérios para a condução dessa discussão são tamanhos que, em debate recente na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, o vereador Carlos Bolsonaro confundiu o debate sobre a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), com pautas de gênero, discutidas pela comunidade LGBT, pedindo a palavra para afirmar-se contra as políticas de autodeterminação de gênero, embora a questão fosse completamente estranha ao debate.[2]

Conforme explica Andressa Pelanda: “Se chama erroneamente de ‘ideologia de gênero’ qualquer iniciativa que busque debater questões de ordem de gênero e orientação sexual em escolas, como iniciativas que visam combater as discriminações de gênero ou orientar e conscientizar sobre educação sexual.”[3]

Todo esse cenário demonstra que o avanço das discussões acerca da educação sexual e de gênero é essencial para o pluralismo democrático e promoção da igualdade, mas esbarra na necessidade de combate às concepções conservadoras, fundadas em falsos argumentos, que geram grande pânico moral sobre a garantia de direitos às minorias sexuais.

Aqueles que combatem a ideia de uma única forma legítima de organização familiar, que defendem a legitimidade de múltiplas formas de expressão do afeto e reforçam a centralidade da educação na redução de desigualdades de gênero são acusados de promover a “ideologia de gênero” pelos inimigos da democracia, que, infelizmente, estão no poder.

Brasília, 17 de junho de 2021.

REFERÊNCIAS

[1]   ADPF 457/GO, Relator: Ministro Alexandre de Moraes; ADPF 460/PR, Relator: Ministro Luiz Fux; ADPF 467/MG, Relator: Ministro Gilmar Mendes; ADPF 526/PR, Relatora: Ministra Cármen Lúcia; ADPF 461/PR, Relator: Ministro Luís Roberto Barroso; ADPF 462/SC, Relator: Ministro Luiz Edson Fachin; ADPF 465/TO, Relator: Ministro Luís Roberto Barroso; ADPF 600/PR, Relator: Ministro Luís Roberto Barroso; ADPF 466/SC, Relatora: Ministra Rosa Weber; ADPF 522/PE, Relator Ministro Marco Aurélio.  

[2] “RJ: Carlos Bolsonaro confunde projeto da LGPD com LGBT durante sessão” – Disponível em: <https://istoe.com.br/rj-carlos-bolsonaro-confunde-projeto-da-lgpd-com-lgbt-durante-sessao/ > Acesso em: 17/06/2021.

[3] “Ideologia de gênero: entenda o assunto e o que está por trás” – Disponível em: <https://azmina.com.br/reportagens/ideologia-de-genero-entenda-o-assunto/ >. Acesso em 17/06/2021.

Raquel Jales B. de Oliveira

Advogada da LBS Advogados
E-mail: raquel.bartholo@lbs.adv.br

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