Quando o contrato de estágio se transforma em relação de emprego

Por que as empresas devem contratar estagiários? O que é um estagiário? Qual a diferença entre as atividades por eles desempenhadas e aquelas dos empregados efetivos? Quando o contrato de estágio se confunde com relação de emprego? Essas e outras perguntas de grande relevância podem ser respondidas pela Lei nº 11.788/08.

Conhecida como Lei do Estágio, ela veio para definir mais precisamente o que vem a ser a figura do estagiário. Estabelece também os limites do contrato de estágio e ainda ressalta as distinções em relação aos empregados regidos pela CLT.

Nos termos de seu artigo 1º, a finalidade principal do estágio é a “preparação para o trabalho produtivo de educandos que estejam freqüentando o ensino regular”, permitindo o ingresso do então estudante (futuro profissional) em situações de vida e trabalho, visando o “aprendizado de competências próprias da atividade profissional”.

Ou seja, o objetivo de um estágio é o ato educativo escolar supervisionado, buscando atender objetivos pedagógicos, com enfoque no cidadão estudante e na formação do futuro empregado. Já na relação de emprego, o interesse do empregador é a força de trabalho do contratado em si para que sejam atingidos os seus objetivos, pela execução de determinada atividade laboral.

Infelizmente, na prática, não é raro nos depararmos com situações em que o empregador, mascarando a relação de emprego efetivamente existente, firma contrato de estágio com estudantes, aproveitando-se do fato de que a mão de obra do estagiário é obviamente bem menos onerosa, já que a empregadora não está obrigada, por exemplo, ao pagamento de FGTS e 13º salário.

Veja-se, por exemplo, o caso de estudante contratado como estagiário de uma agência bancária, mas que, na prática, acaba exercendo exatamente as mesmas atividades de um bancário comum, realizando vendas e atendimentos a clientes, porém com remuneração muito inferior.

Nesse sentido, na busca pela proteção ao estagiário, a Lei do estágio fez por bem fixar os parâmetros que o caracterizam e esclarece que, observadas tais regras, a relação de estágio não cria vínculo empregatício (artigo 3º, §2º).

Assim, para que se tenha devidamente caracterizados e respeitados os parâmetros do contrato de estágio, os requisitos primordiais são que: a) o estagiário esteja matriculado em instituição escolar e tenha frequência regular em curso de educação superior, ensino médio ou anos finais do ensino fundamental; b) seja celebrado um termo de compromisso entre o estagiário, empresa concedente do estágio e a instituição de ensino na qual esteja o estudante matriculado e; c) haja compatibilidade entre as atividades desenvolvidas no estágio e aquelas previstas no termo firmado entre as partes.

Ainda, o seu artigo 7º determina uma série de obrigações por parte das instituições de ensino, como, por exemplo, indicar professor orientador da área a ser desenvolvida pelo estagiário, como responsável por acompanhar e avaliar as atividades ali realizadas.

Com tais garantias, apesar de a lei do estágio esclarecer que a relação de estágio não cria vinculo empregatício, a legislação também demonstra extremo zelo com a figura do estagiário, estampando, claramente, em seu artigo 3º, §2º que o “descumprimento de qualquer dos incisos deste artigo ou de qualquer obrigação contida no termo de compromisso caracteriza vínculo de emprego do educando com a parte concedente do estágio para todos os fins da legislação trabalhista e previdenciária”.

E a jurisprudência tem sido rigorosa no sentido de reconhecer o vínculo empregatício nas hipóteses em que os requisitos legais forem descumpridos ou, ainda, a finalidade do estágio for desvirtuada de alguma maneira, condenando a parte concedente do estágio ao pagamento de todas as obrigações inerentes ao reconhecimento da relação de emprego.

O Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região é um bom exemplo, vejamos:

“CONTRATO DE ESTÁGIO. INSTITUIÇÃO BANCÁRIA. REGULARIDADE FORMAL X PRIMAZIA DA REALIDADE. Em se tratando de relação de estágio, não basta estar o contrato em conformidade com as regras formais pertinentes a esta modalidade de relação de trabalho. Além da interveniência obrigatória da instituição de ensino, faz-se necessário o acompanhamento e a avaliação das atividades exercidas, as quais deverão estar em conformidade com os currículos, programas e calendários escolares, sob pena de se configurar o vínculo empregatício nos moldes dos arts. 2º e 3º da CLT. Presentes na relação de trabalho os requisitos que caracterizam a relação de emprego, tem-se a incidência do art. 9º da CLT, fazendo com que o período do estágio configure vínculo empregatício para todos os efeitos legais. HORAS EXTRAS. ART. 224, § 2º, DA CLT. Não configura cargo de confiança bancária, nos termos do art. 224, § 2º, da CLT, o exercício de cargo em comissão cujas tarefas têm caráter técnico-operacional, sem fidúcia especial, delegação de responsabilidade do empregador ou subordinados (inteligência da Súmula nº 102 do TST). JORNADA EFETIVAMENTE CUMPRIDA. A presunção de veracidade dos cartões de ponto cede ante a prova oral no sentido de havia trabalho após o registro de saída além de revelar jornada superior àquela anotada. Incidência do princípio da primazia da realidade. MULTA CONVENCIONAL. DESCUMPRIMENTO DE CCT. PAGAMENTO DE HORAS EXTRAS. INCIDÊNCIA MÊS-A-MÊS. Verificado o descumprimento da CCT com relação ao pagamento de horas extras, incide a multa convencional de forma simples, não havendo previsão ou mesmo margem para interpretação no sentido de aplicação mês a mês em se tratando da mesma verba. Recurso do reclamado parcialmente conhecido e desprovido. Recurso do reclamante parcialmente conhecido e desprovido.” (TRT-10 – RO: 00704201301010008 DF 00704-2013-010-10-00-8 RO, Relator: Desembargador Mário Macedo Fernandes Caron, Data de Julgamento: 30/07/2014, 2ª Turma, Data de Publicação: 08/08/2014 no DEJT)

ESTÁGIO. VÍNCULO EMPREGATÍCIO. CONFIGURAÇÃO. Em princípio, devido a evidente finalidade social e educacional do contrato de estágio, a relação de trabalho dele decorrente não tem o condão de formar vínculo empregatício do estudante-trabalhador com o concedente (Lei n. 6.494/77, art. 4º e Decreto n. 87.497/82, art. 3º). O legislador, certamente com o objetivo de coibir situações simuladas e danosas, fixou requisitos formais e materiais inerentes à correção e regularidade do estágio. Assim, comprovado o desvirtuamento dessa relação de trabalho pelo não-atendimento de requisitos essenciais à formação e execução do contrato de estágio, correta a decisão que a declara como vínculo de emprego entre as partes. EMPREGADO DE FINANCEIRA. ENQUADRAMENTO COMO BANCÁRIO. Sendo a reclamada uma empresa de financiamento, enquadra-se aos termos da Súmula n.º 55 do C. TST e, por conseqüência, seus empregados estão submetidos ao disposto no art. 224 da CLT, que trata da duração e condições de trabalho dos bancários. HORAS EXTRAS. CONTESTAÇÃO GENÉRICA. VERBETE Nº 18 DA EGR. 1ª TURMA DESTE REGIONAL. Nos termos do Verbete de jurisprudência nº 18 desta Egr. 1ª Turma, se o empregador-reclamado limita- se a negar a jornada de trabalho aduzida na inicial, deixando de indicar o horário efetivamente cumprido, devem prevalecer os fatos trazidos pelo empregado reclamante. (TRT-10 – RO: 293200801410009 DF 00293-2008-014-10-00-9, Relator: Desembargador Pedro Luis Vicentin Foltran, Data de Julgamento: 05/11/2008, 1ª Turma, Data de Publicação: DEJT 14/11/2008) 

Diante deste contexto, o que se percebe é que a figura do estágio, altamente privilegiada por força da legislação em razão de seu caráter pedagógico e formador da nova classe trabalhadora, possui também um tênue limite que, uma vez ultrapassado, ao invés de cumprir seu objetivo, acabará por mostrar ao jovem estudante a face mais nefasta do mercado de trabalho, qual seja, a da exploração irresponsável da força de trabalho, aliada à precarização e à supressão de direitos.

Assim, trata-se de vertente frontal e diariamente combatida ao menos por aqueles que, como nós, ainda acreditam que o Estado Democrático tem como fundamento a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho. 

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