As novas tecnologias surgem na vida moderna provocando os mais diversos efeitos. No mundo do trabalho não é diferente. Este vive tempos sombrios e de grandes retrocessos no Brasil, evidenciados pelas Reformas Trabalhista e Previdenciária, pelo fim do Ministério do Trabalho e pela retomada de discussões sobre a extinção da Justiça do Trabalho.
Nessa conjuntura ultraliberal, de modelo de Estado Pós-democrático[1], as relações de trabalho passam a ter novos contornos. Em um momento de crise econômica e alta do desemprego, os aplicativos de transporte privado se colocam como alternativas aos desocupados e pessoas com dificuldades para se inserir no mercado, na tentativa de se obter renda ou complementar uma já existente.
Indicativos obtidos pela Fundação Instituto Administração[2] apontam que a idade média do entregador de aplicativo é de 29 anos, os números abrangem motoboys e ciclistas. A maioria (97,4%) é homem; 73% têm apenas o ensino médio completo, e 11,7% já concluíram ensino superior ou pós-graduação.
Na contramão dos que argumentam sobre a precarização desse modelo de trabalho, não é estranho se deparar com trabalhadores que se veem na qualidade de empreendedores. Para eles, os aplicativos de entrega proporcionam liberdade, ainda que trabalhando em jornadas superiores a 12 horas, sendo que, para ganhar mais, basta se esforçar mais[3].
Esse discurso de “autogerenciamento” do trabalho é o mesmo difundido pelas plataformas, para afastar qualquer possibilidade de vínculo de emprego com esses trabalhadores.
Dessa forma, o presente artigo não pretende esgotar o assunto, até porque as definições desse novo modelo de trabalho seguem em conflitos de entendimento, portanto, traremos uma análise sobre os aplicativos de transporte privado, em especial o Uber. “Fenômeno empresarial moderno” fundado nos Estado Unidos e lançado em 2010 na forma de aplicativo (“App”) para smartphone[4], possibilitando entrega de comida à distribuição de encomendas, e transporte de pessoas.
A Uber é o maior símbolo da chamada economia compartilhada ou economia de bico, compreendida, em linhas gerais, como atividades que envolvem a realização de tarefas por meio de plataformas on-line que colocam em contato diversas organizações e indivíduos, permitindo a aproximação entre consumidores e trabalhadores de todo o mundo[5], ou seja, promete ajudar indivíduos vulneráveis a tomar o controle de suas vidas, tornando-os microempresários.
À vista disso, esse modelo traz novo conceito ao empreendedorismo, tirando da cartola seus ideários meritocráticos. Porém, está longe de oferecer liberdade a seus “parceiros”. O que eles querem é justamente o contrário: o aplicativo estimula os motoristas a aceitarem todas as corridas, embora “livres” para escolher seu horário de trabalho, e a recusa nas viagens coloca em risco a continuidade dos “parceiros” na plataforma, uma vez que cabe à empresa, unilateralmente, a avaliação da exclusão ou suspensão de cada motorista-parceiro.
Além disso, o monitoramento do trabalho é em tempo real e a dinâmica dos preços do serviço é determinada pela empresa sem qualquer consulta prévia aos trabalhadores. A avaliação dos motoristas é atribuída a terceiros (clientes), responsáveis pela qualidade do serviço a partir de um sistema de notas, em uma escala que varia de zero a cinco. Uma vez que um motorista se encontre abaixo da média estipulada pela empresa, os algoritmos prontamente o descredenciam do aplicativo. Assim, as “estrelas” são meio de pressão psicológica, demandando uma busca incansável pela empatia e satisfação do cliente.
Frisa-se que a Uber se considera uma plataforma que aproxima prestadores de passageiros, entendendo que os trabalhadores que prestam serviços por meio do aplicativo são “independentes”. Um olhar mais atento ao processo real permite, no entanto, reconhecer as velhas relações de subordinação e dependência. Mais do que isso, a velha busca das organizações empresariais pela desresponsabilização pelos impactos que geram na vida de cada trabalhador.
Dessa agenda, sai vitorioso o agente empregador: pode pagar menor remuneração, pode ignorar a inconveniente barreira metafísica que é a humanidade do trabalhador e a sua vida fora da empresa, além de socializar o risco de realização da atividade econômica. A flexibilização que o trabalho “uberizado”, isto é, toda esta gama de novos “empregos” geridos pelas plataformas digitais e seus algoritmos, parece oferecer um cenário catastrófico a longo prazo. Eis que todo processo é conduzido sem qualquer tipo de desgaste para a empresa, e em total impotência do motorista, uma vez que tudo ocorre por meio do sistema operacional, sem qualquer tipo de ingerência, fiscalização ou assistência.
Nesse sentido, o sistema que surge como alternativa econômica aos desempregados é também capaz de absorver seus tempos “livres”. O trabalho passa a se fazer presente em todo e qualquer momento, bastando ativar o aplicativo. Ao contrário de outros modelos de trabalho, esse visa ocupar não apenas o corpo do trabalhador, mas sua alma, restringindo qualquer chance de liberdade, em um intenso ciclo carcerário.
A plataforma se mostra como paradigma desta interação entre trabalho, empreendedorismo e tecnologia, tida como o modelo inspirador dessa nova economia e organização produtiva, sobretudo pelo seu sucesso midiático.
É claro que a associação do termo ao empreendedorismo tem cunho político, pois transfere a responsabilidade da empregabilidade para o trabalhador. “É a sociedade falando para o desocupado: “Vire-se para gerar um posto de trabalho”. Então, fala em empreender – quando, na verdade, ele não tem controle algum, preço, passageiro, sequer poder trabalhar sem autorização da empresa, que por sua vez exige autovigilância constante. Quem define são os algoritmos. Que autonomia tem o trabalhador uberizado?
Contrapondo essa ideia, em recente decisão, no processo: RR nº 1000123.89.2017.5.02.0038, a 5ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho entendeu que um motorista de Uber tinha autonomia e ampla flexibilidade em determinar a rotina, horários, locais de trabalho e quantidade de clientes, indeferindo seu pedido de reconhecimento da relação de emprego com a empresa. O Ministro Breno Medeiros[6] afirmou, no julgamento, que “que o motorista tinha a possibilidade de ficar off-line, com flexibilidade na prestação de serviços e nos horários de trabalho”. Ainda, lembrou da necessidade de regulamentação dessa nova forma de trabalho.
A decisão só demonstra a inércia do Judiciário, que reconhece a necessidade de regulação desse modelo de trabalho, mas se mantém apático diante da precariedade em que estão inseridos esses trabalhadores.
Dessa forma, a transição de uma economia industrial, material, analógica da escassez, para uma economia digital ainda não nos permite definir os seus contornos finais, mas já é possível vislumbrar suas tendências e perigos, sobretudo, no que toca o âmbito da anomia regulatória e da concentração de riqueza. Logo, o Direito do Trabalho tem obrigação de garantir a concorrência leal entre os trabalhadores, impedindo que eles concorram entre si impondo níveis cada vez mais baixos de condições laborais.
Sempre foi estratégia da corporação capitalista desresponsabilizar-se dos danos sociais que provoca, tal como se fazer como heroína da geração de emprego, renda e tecnologia quando lhe é conveniente. O Direito do Trabalho deve lembrá-la que, ainda que tenha a propriedade dos meios de produção ou, então, dos algoritmos e das informações, quem gera o valor, em última instância, é e sempre foi o trabalho de pessoas humanas.
REFERÊNCIAS
[1] KREIN, José Dari; ABÍLIO, Ludmila; FREITAS, Paula; BORSARI, Pietro; CRUZ, Reginaldo. Flexibilização das relações de trabalho: insegurança para os trabalhadores. In: KREIN, José Dari; GIMENEZ, Denis Maracci; SANTOS, Anselmo Luis (Org.). Dimensões críticas da reforma trabalhista no Brasil. Campinas: Curt Nimuendajú, 2018. p. 80-130.
[2] MACHADO, Leandro. BBC News Brasil: Dormir na rua e pedalar 12 horas por dia: a rotina dos entregadores de aplicativos, 2019. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-48304340>. Acesso em 16/02/2020.
[3] Idem.
[4] UBER, Fatos e dados sobre a Uber. Uber Newsroom, São Paulo, 10 maio 2019. Disponível em: https://www.uber.com/pt-BR/newsroom/fatos-e-dados-sobre-uber/. Acesso em 07/02/2020.
[5] BRASIL. Ministério Público da União. Ministério Público do Trabalho. Coordenadoria Nacional de Combate às Fraudes na Relação de Trabalho – CONAFRET. Grupo de Estudos “GE UBER”: Relatório Conclusivo, 2017, pág. 26-44.
[6] BRASIL. Superior Tribunal do Trabalho. Quinta Turma Afasta Reconhecimento de Vínculo de Emprego de Motorista nº PROCESSO Nº TST- RR-1000123-89.2017.5.02.0038. Brasília, 07 fev. 2020. Disponível em: <http://aplicacao4.tst.jus.br/consultaProcessual/consultaTstNumUnica.do?consulta=Consultar&conscsjt=&numeroTst=1000123&digitoTst=89&anoTst=2017&orgaoTst=5&tribunalTst=02&varaTst=0038&submit=Consultar>. Acesso em 08/02/2020.