A escravidão contemporânea reduz o trabalhador a mero objeto na seara produtiva, afastando a própria condição de ser humano e, assim, representa graves violações à dignidade humana, seja com cerceio da liberdade física, moral ou psicológica, seja em virtude de servidão por dívidas, condições degradantes de trabalho ou jornadas exaustivas.
A Convenção das Nações Unidas sobre escravatura de 1926 traz, em seu artigo 1º: “Escravidão é o estado e a condição de um indivíduo sobre o qual se exercem, total ou parcialmente, alguns ou todos os atributos do direito de propriedade.” Igualmente, a Convenção da OIT n° 29 de 1930 dispõe, em seu artigo 2º: “Para fins da presente convenção, a expressão trabalho forçado ou obrigatório, designará todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo, sob ameaça de qualquer qualidade, e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade.”
Apesar de a escravidão ter sido formalmente abolida no Brasil em 1888, a mentalidade e o comportamento escravocratas subsistem na sociedade, assim como a vida do trabalhador explorado não melhorou de fato, ao revés, sob alguns aspectos, aprofundou-se ainda mais o abismo das desigualdades sociais, econômicas, raciais e culturais.
A Lei n° 12.064, de 29 de outubro de 2009, institui a criação do Dia Nacional do Combate ao Trabalho Escravo e a Semana Nacional de Combate ao Trabalho Escravo. A data oficial é dia 28 de janeiro, como deferência ao assassinato de três auditores fiscais do trabalho e um motorista em Unaí (MG), quando investigavam denúncias de trabalho escravo.
De lá para cá, medidas vêm sendo adotadas no combate ao trabalho escravo, como a fiscalização que era realizada pelo extinto Ministério do Trabalho (atual Ministério da Economia) e a lista suja mantida pelo governo. Por exemplo, a Lei n° 10.608, de 20 de dezembro de 2002, assegurou que ao trabalhador resgatado na condição análoga à de escravo o direito ao recebimento de três parcelas do “seguro Desemprego Especial para Resgatado” no valor de um salário-mínimo cada.
No entanto, o cenário não é otimista: os dados são alarmantes. Estima-se que, de 1995 a 2015, cerca de 50 mil pessoas foram libertadas do trabalho análogo ao de escravo no país. O perfil dos resgatados era, em regra, de migrantes internos ou externos, 95% homens, escolaridade até a 5ª série e faixa etária entre 18 e 44 anos. Os ramos em que mais são encontrados trabalhadores e trabalhadoras nessas condições são: pecuária bovina e extração de cana de açúcar em áreas rurais e construção civil e confecções nos centros urbanos.
Segundo apontado pelo relatório “índice Global de Escravidão 2018” produzido pela Fundação Walk Free e apresentado à ONU naquele ano, cerca de 40,3 Milhões de pessoas no mundo foram submetidas a atividades análogas à escravidão em 2016, sendo 370 mil em solo brasileiro.
No Brasil, o trabalho análogo ao de escravo é definido a partir do art. 149 do Código Penal em que está prevista pena de reclusão de 2 a 8 anos e multa para aquele que for condenado pela prática do crime. Segundo o dispositivo, os elementos caracterizadores do trabalho análogo ao de escravo são: condições degradantes, jornada exaustiva, trabalho forçado e servidão por dívida. Segundo Carlos Henrique Borlido Haddad[1]:
Todas as condutas descritas no tipo penal, quando realizadas, levam a uma constatação: há exploração abusiva da força de trabalho. A submissão a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva pretende extrair do trabalhador prestação laboral além do normalmente exigido, que ultrapassa suas limitações físicas no intuito exclusivo de beneficiar o empregador. A sujeição a condições degradantes de trabalho, mesmo que o labor desenvolva-se em limites físicos moderados, representa para o empregador maior oportunidade de lucro, por que se paga por prestação de serviço de baixo custo. A restrição da liberdade de locomoção por qualquer meio, em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto, por força de cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, e em virtude de vigilância ostensiva no local de trabalho ou retenção de documentos ou objetos pessoais, garante a permanência da mão de obra na frente de trabalho por mais tempo do que determina a lei, e se trata da forma mais evidente de utilizar a força do labor contínua e ininterruptamente.
Percebe-se em todas essas situações que há um grande desequilíbrio de forças, que vai além da mera subordinação que estigmatiza a relação de trabalho. Palo Neto[2] vai além, ao afirmar que:
E não há dúvidas de que a liberdade de autodeterminação, na maioria das vezes, está comprometida, pois a estrutura econômica estipula a concentração de renda e amplia a miséria, promove a formação de um exército de reserva de trabalhadores dispostos a aceitar as piores condições em troca de um trabalho que lhe permita o sustento próprio e de sua família.
Apesar dos avanços e esforços em direção à defesa dos direitos dos trabalhadores oprimidos pelo trabalho nessas condições, o sistema de combate vem sofrendo duros ataques, enfraquecendo essa luta tão necessária. Cite-se, por exemplo, a Reforma Trabalhista em vigor desde novembro de 2017, que enfraquece a defesa do trabalhador e a mais recente MP n° 905, em vigor, que limita a atuação do Ministério Público do Trabalho na aplicação de multas por descumprimento dos TACs – Termos de Ajustamento de Conduta, que é um acordo firmado com um infrator de determinados direitos coletivos.
Outro desafio é a dificuldade na busca de mecanismos que sejam efetivos o suficiente para erradicar tal problema. Neste contexto, Mariana Martins de Castilho Fonseca alerta que a análise do confisco de terras como medida punitiva torna-se interessante na luta pela dignificação das relações laborais no campo. Além de um adequado instrumento punitivo ao empresário que lucra com a degradação da vida humana, o expediente reforça o texto constitucional do artigo 186 da Constituição federal.
Ocorre que a proposição legislativa que visava regulamentar tal possibilidade punitiva, a PEC n°438/2001, apesar de aprovada na Câmara dos Deputados desde o ano de 2004, segue sem apreciação pelo Senado Federal em razão da forte resistência das bancadas ruralistas.
Essa dura realidade traz consigo, cada vez mais, a necessidade de posicionamento intransigente da sociedade civil e das instituições em defesa da classe trabalhadora, na medida em que a dignidade e o resgate dos trabalhadores e trabalhadoras encontrados nessas condições estão ameaçadas com as medidas de governos neoliberais, que, em nome do progresso, flexibilizam direitos e enfraquecem a luta contra a escravidão moderna, fazendo com que estes trabalhadores e trabalhadoras, em nome da “precisão” (necessidade extrema), se submetam à trabalhos em condições desumanas e degradantes para a sobrevivência pessoal e familiar.
A dignidade humana da classe trabalhadora é inegociável. Sigamos em sua defesa!
REFERÊNCIAS
“Privação de liberdade ou atentado à dignidade: escravidão contemporânea”. Organizadores: Ricardo Rezende Figueira, Adonia Antunes Prado, Edna Maria Galvão – 1 ed. – Rio de Janeiro: Mauad X, 2013.
PALO NETO, Vito. “Conceito jurídico e combate ao trabalho escravo contemporâneo”. São Paulo: LTr, 2008.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L12064.htm
https://mpt.mp.br/
Acesso em 13/01/2020: https://reporterbrasil.org.br/guia/
Acesso em 13/01/2020: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/com-370-mil-escravos-modernos-brasil-lidera-ranking-na-america-latina/
Acesso em 13/01/2020: https://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-escravo/lang–pt/index.htm
Acesso em 13/01/2020: https://www.cptnacional.org.br/campanhas-e-articulacoes/campanhas/campanha-de-prevencao-e-combate-ao-trabalho-escravo
Acesso em 13/01/2020: https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2019/11/19/mp-905-altera-clt-e-reduz-poder-do-ministerio-publico-do-trabalho.ghtml
Acesso em 13/01/2020: https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI214702,91041-28+de+janeiro+dia+nacional+de+combate+ao+trabalho+escravo+no+Brasil
[1] HADDAD, Carlos Henrique Borlido. Aspectos penais do trabalho escravo. “Privação de liberdade ou atentado à dignidade: escravidão contemporânea”. Organizadores: Ricardo Rezende Figueira, Adonia Antunes Prado, Edna Maria Galvão – 1 ed. – Rio de Janeiro: Mauad X, 2013, p. 77.
[2] PALO NETO, Vito. “Conceito jurídico e combate ao trabalho escravo contemporâneo”. São Paulo: LTr, 2008, p. 96.