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São Paulo, quanta dor! São Paulo, quanto amor!

De cima do Copan eu não vejo prédios, eu vejo prosa, eu vejo poesia. Aquele conjunto de concreto disposto nas mais variadas formas e tamanhos são lidos por mim em versos, estrofes e capítulos, dos mais tristes, violentos e solitários aos mais belos e esperançosos. São Paulo pode não ser um cartão postal daqueles de encher os olhos, mas é um livro aberto. E como um livro, para contemplar sua beleza, não basta olhar de fora, tem que entrar e estar disposto a mergulhar em cada página.

Nessa narrativa que ultrapassa gerações, bandeirantes já se impuseram protagonistas, assim como latifundiários, industriais e rentistas. Um dia, eu penso, os protagonistas reais dessa estória vão finalmente redesenhar a cidade. Estátuas vão cair, em definitivo. Elevados e ruas não vão mais homenagear ditadores, em definitivo. E aquele cemitério de rico na Consolação vai virar parque. Sem muros e sem mortos. A periferia, enfim, vai virar centro. Até lá, lutamos.

E a nossa luta transpira a cidade e a cidade transpira luta. Largo da Batata, Avenida Paulista, Praça da República, Teatro Municipal, Estrada do M’Boi Mirim. Os palcos das batalhas são muitos e estão inscritos não só no asfalto das ruas e avenidas da cidade, mas em prédios e terrenos ocupados. Não dá pra abrir esse livro e não ver estampadas as cores e as palavras de ordem na Avenida 9 de julho ou na Rua Augusta. Mas essas batalhas também são travadas nos “quartos de despejo”, talvez com menos cores e com menos palavras de ordem.

Maria Carolina de Jesus escreveu essa luta em meados da década de 1950 e ao escrevê-la retratou São Paulo, uma cidade com sua sala de visitas, “lustres de cristais e tapetes de veludo” e suas favelas, ou quartos de despejos, ignoradas pelas autoridades, onde se descartam objetos sem uso. Mais de sessenta anos depois, os quartos de despejo ainda existem. Assim como existem as pessoas que ali habitam.

Embora os projetos de gentrificação e de extermínio da população negra não sejam uma peculiaridade paulistana, é aqui que gritam mais alto. Os Racionais escreveram, em 1997 depois de Cristo, que a cada quatro horas um jovem negro morria violentamente em São Paulo. Mais de vinte anos depois, essa realidade não mudou.[1] Ainda assim, as pessoas negras existem. Os favelados existem.

Existir em uma cidade pronta pra te exterminar não é pouco. Agora, existir nas universidades, existir cantando, existir fazendo rolezinho e existir sorrindo, aí, é revolucionário. E o fato é que nós existimos, amamos e sorrimos. E apesar de termos negado nosso direito à cidade, nós a ocupamos. Estamos na Ipiranga, na São João, no Anhangabaú, estamos na periferia e no centro. Não somos visita e não vamos bater na porta para entrar. A cidade é nossa e nós vamos celebrar.

Eu celebro a cidade descendo a Rua Augusta sentido centro. Desde a sua esquina com a Avenida Paulista, até a Praça Roosevelt. Mas vou a pé, devagar, observando cada metro quadrado. Nesse trecho está não só uma página, mas um capítulo inteiro da nossa história. É mais um retrato da cidade, por vezes triste, violento e solitário, mas também belo e esperançoso. A cada quarteirão, mudam-se as cores, transformam-se os rostos e multiplicam-se as histórias.

Nessa descida eu encontro de tudo, encontro de todos e todes se encontram. Filmes inéditos, livros raros, cigarros indianos, brigadeiros de diversos sabores, pessoas de todos os estilos e crenças e restaurantes e bares para todos os gostos. A rua vibra a cidade. É um espelho de nós mesmos e uma lembrança de que o centro é nosso, de que não somos visita. É a verdadeira praia paulistana.  

Chegando ao final da rua, depois de cruzar centenas de cidades e histórias em pouco menos de dois quilômetros, eu encontro o Parque Augusta, que é fruto da luta desse povo que insiste em não morrer, que insiste em fazer arte e fazer o povo sorrir. Nesse momento, em que se inicia o 469º capítulo desse livro, só Tom Zé, o baiano mais paulistano dessa cidade, pode traduzir o que sinto. Quanta dor, São Paulo! Quanto amor!

 

São, São Paulo

Quanta dor

São, São Paulo

Meu amor

 

São oito milhões de habitantes

De todo canto e nação

Que se agridem cortesmente

Correndo a todo vapor

E amando com todo ódio

Se odeiam com todo amor

São oito milhões de habitantes

Aglomerada solidão

Por mil chaminés e carros

Caseados à prestação

Porém com todo defeito

Te carrego no meu peito

 

São, São Paulo

Quanta dor

São, São Paulo

Meu amor

 

Salvai-nos por caridade

Pecadoras invadiram

Todo o centro da cidade

Armadas de rouge e batom

Dando vivas ao bom humor

Num atentado contra o pudor

A família protegida

O palavrão reprimido

Um pregador que condena

Uma bomba por quinzena

Porém com todo defeito

Te carrego no meu peito

 

São, São Paulo

Quanta dor

São, São Paulo

Meu amor

 

Santo Antônio foi demitido

Dos ministros de cupido

Armados da eletrônica

Casam pela TV

Crescem flores de concreto

Céu aberto ninguém vê

Em Brasília é veraneio

No Rio é banho de mar

O país todo de férias

Aqui é só trabalhar

Porém com todo defeito

Te carrego no meu peito

 

São, São Paulo

Quanta dor

São, São Paulo

Meu amor[2]

 

 

São Paulo, 25 de janeiro de 2023. 

 

[1] G1. ‘A cada 23 minutos, um jovem negro morre no Brasil’, diz ONU ao lançar campanha contra violência. 07/11/2017. Disponível em: https://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/a-cada-23-minutos-um-jovem-negro-morre-no-brasil-diz-onu-ao-lancar-campanha-contra-violencia.ghtml.

[2] Tom Zé, São São Paulo.

Felipe Vasconcellos

Sócio da LBS Advogados

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